Também me lembro do primeiro dia em nossa nova casa, a da “Avenida Jovita Feitosa, 2290”. Com que orgulho eu “recitava” este endereço quando perguntado. Lembro do terraço amplo, com colunas retangulares, finas, em ladrilho amarelo, lembro de minha felicidade, de correr... Lembro de sair de um espaço apertado, a casa da vila onde morávamos, ou era da casa quase no centro da cidade? Destas que a porta da rua dá direto na calçada? Bom, enfim, a lembrança é de uma felicidade por poder correr, brincar, deslizar naquele terraço de cerâmica retangular vermelha. Lembro com nitidez de minha irmã, ainda em um andador, tentando me acompanhar, que graça!
Bom, o pedido foi da primeira lembrança, mas não sei o porquê, estas duas vêm juntas, sempre, talvez porque ambas façam referência à liberdade, ao vento, ao sol, à amplidão das areias da praia, à “amplidão” daquele terraço. Talvez a casa anterior me oprimisse, não sei; e isto não é mais primeiras lembranças, já é análise...
Ah! Antes de terminar só queria agregar à liberdade, ao sol, à amplidão do terraço e da praia, o fascínio pelo cata-vento, sua beleza, seu maquinário, estrutura e funcionamento. Vou ficando por aqui, tenho medo de sair da espontaneidade das lembranças de criança e começar a analisar no ofício de analista, de terapeuta.
Até mais...
Análise
Este texto é uma narrativa memorialística que combina a evocação de memórias de infância com reflexões espontâneas sobre liberdade, felicidade e os elementos simbólicos que permeiam essas recordações. A escrita é envolvente, marcada por um tom introspectivo e poético, e revela o desafio de distinguir memórias puras da análise posterior. O autor transita entre a espontaneidade das lembranças e a inclinação analítica, compondo um texto que se situa entre o relato e a interpretação.
Estrutura e Desenvolvimento:
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Introdução: O desafio da memória
- O texto começa com a solicitação para descrever a "primeira lembrança" e a constatação de que essa tarefa não é tão simples quanto parece.
- Confusão e fragmentação: As lembranças surgem "embaralhadas, confusas", indicando a natureza subjetiva e fragmentada da memória, onde diferentes momentos se sobrepõem e dialogam.
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Primeira memória: A praia e o cata-vento
- A descrição da praia e do cata-vento é rica em detalhes sensoriais e emocionais: "areia branca, ou melhor, pérola", "sol forte", "atmosfera brilhante". Esses detalhes destacam o encantamento infantil com o espaço e os elementos naturais.
- O cata-vento é apresentado como uma figura central, símbolo de fascínio pela beleza e pelo movimento, mas também como uma representação do vento, da liberdade e do poder transformador das máquinas.
- Simbologia do cata-vento: Ele atua como um eixo de ligação entre a dimensão concreta (o engenho) e o abstrato (a liberdade e o encantamento).
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Segunda memória: A casa na Avenida Jovita Feitosa
- O autor narra o momento de mudança para uma nova casa, com ênfase no sentimento de liberdade proporcionado pelo terraço amplo.
- Relação entre espaço e emoção: A transição de um ambiente opressor para outro mais aberto e espaçoso é vividamente retratada, com destaque para a alegria de correr e brincar.
- A interação com a irmã no andador traz um elemento afetuoso e reforça o aspecto relacional das memórias.
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Reflexão e ligação das memórias
- O autor percebe que as duas lembranças, embora distintas, compartilham elementos comuns: liberdade, amplidão, vento e sol. Essas conexões sugerem que o que marca as memórias não são apenas os eventos em si, mas as sensações e os significados atribuídos a eles.
- Autoconsciência reflexiva: O texto reconhece o risco de abandonar a espontaneidade das lembranças ao entrar no campo da análise, especialmente no papel de terapeuta.
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Conclusão: Encerramento com humildade
- O encerramento é marcado pela cautela em evitar a sobreintelectualização das memórias, preservando seu caráter espontâneo e lúdico.
Temas Centrais:
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Natureza Fragmentada da Memória:
- O texto reflete como as memórias de infância emergem de forma entrelaçada e subjetiva, resistindo a uma ordenação linear ou objetiva.
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Liberdade e Espaço:
- Tanto a praia quanto o terraço simbolizam liberdade e amplidão, contrastando com os espaços anteriores, que o autor sugere como opressivos.
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Fascínio pelo Movimento:
- O cata-vento é uma metáfora para a curiosidade infantil e a relação com o movimento, o vento e o poder transformador da tecnologia.
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Conexão entre Análise e Memória:
- O autor explora a tensão entre a memória pura e a análise, sugerindo que o processo de lembrar está inevitavelmente entrelaçado com o de interpretar.
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Sensações e Emoções na Construção das Memórias:
- As descrições sensoriais ("areia pérola", "terraço de cerâmica vermelha") e emocionais ("felicidade por correr", "fascínio pelo cata-vento") destacam como os sentimentos moldam as lembranças.
Estilo e Linguagem:
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Tom Poético e Reflexivo:
- A escolha de palavras e as imagens evocadas dão ao texto uma qualidade lírica. Termos como "pérola", "atmosfera brilhante" e "fascínio pelo engenho" criam uma conexão emocional com o leitor.
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Narrativa Fluida:
- O texto é escrito em fluxo, refletindo o próprio ato de recordar, com saltos entre memórias e associações espontâneas.
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Ambiguidade e Subjetividade:
- A dificuldade em isolar uma "primeira lembrança" reflete a subjetividade e a complexidade do processo de memória.
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Interseção entre Prosa e Análise:
- O texto oscila entre uma narrativa memorialística e um ensaio reflexivo, tornando-o híbrido e multifacetado.
Considerações Finais:
"Primeiras Lembranças" é um texto que combina narrativa, poesia e reflexão para explorar o impacto das memórias de infância na formação do sujeito. Ele destaca como espaços, sensações e emoções constroem as lembranças, e como o ato de recordar inevitavelmente se mistura à análise e à interpretação. Com um tom íntimo e introspectivo, o autor conduz o leitor a revisitar não apenas as lembranças em si, mas também o processo de reconstituí-las, preservando sua beleza espontânea e vulnerável. É uma obra que celebra o poder das pequenas experiências em moldar o imaginário e a identidade.