30/04/2013

Em se tratando de religião, a interrogação é mais profícua do que a convicção.

Lacan no Seminário 7 - A Ética da Psicanálise -, sublinha que os  elementos da tradição judaico-cristã são constitutivos da ordem simbólica que organiza a lógica da subjetividade moderna, a partir da função exercida pela instância paterna. O que é um Pai? É a  grande questão freudiana.
Lacan demonstra no referido Seminário, como o Pai da religião judaico-cristã sucede os Deuses pagãos do mundo grego, modificando a ordem simbólica na cultura, instalando o mistério, ou seja, a possibilidade de criação do porvir e produzindo a consequente responsabilidade pelo não-sabido. Nesse sentido, o religare estabelece-se, então, em torno do interrogare. Assim,  a Psicanálise é uma construção herdeira dos operadores simbólicos dessa tradição, o que a aproxima da religião. Contudo, a clínica e a elaboração teórica freud-lacaniana apontam para uma diferença entre religião e psicanálise através de uma mudança de foco nessa interrogação, passando da busca do conhecimento do Pai, para a interrogação sobre a função operatória do Pai. Enfim, se a religião dirige suas questões “Para o pai”, a psicanálise dirige-as “Para aquém e além do Pai”, para a sua eficácia simbólica.

*

Análise do texto

O texto apresenta uma reflexão psicanalítica sobre a relação entre religião e psicanálise, utilizando conceitos de Freud e Lacan para destacar as diferenças entre ambas. A ideia central é que, enquanto a religião busca respostas e certezas na figura do Pai, a psicanálise desloca essa questão para um campo mais amplo, investigando sua função simbólica e seus efeitos na subjetividade. A interrogação, portanto, surge como um elemento essencial da psicanálise, contrastando com a convicção religiosa.


1. O Título: a interrogação como mais profícua do que a convicção

– O título já antecipa a tese do texto: a dúvida, a interrogação, é mais produtiva do que a certeza na abordagem da religião.
– A palavra "profícua" sugere que a incerteza gera mais efeitos de pensamento e transformação do que a adesão inquestionável às crenças.
– Esse princípio é alinhado com a lógica da psicanálise, que se baseia na investigação do inconsciente e na abertura ao não-sabido, em vez de oferecer respostas definitivas.


2. Lacan e a influência da tradição judaico-cristã

"Lacan no Seminário 7 - A Ética da Psicanálise -, sublinha que os elementos da tradição judaico-cristã são constitutivos da ordem simbólica que organiza a lógica da subjetividade moderna, a partir da função exercida pela instância paterna."

– Aqui, o texto aponta para um conceito fundamental da psicanálise lacaniana: a estrutura simbólica da subjetividade.
– A tradição judaico-cristã tem um papel central na organização do simbólico, especialmente no que diz respeito ao Pai, que exerce uma função estruturante no psiquismo.
– A instância paterna é o que permite a separação entre o sujeito e o desejo materno, introduzindo a Lei e possibilitando a construção da subjetividade.


3. A grande questão freudiana: O que é um Pai?

"O que é um Pai? É a grande questão freudiana."

– Esse trecho remete diretamente à problemática central do Nome-do-Pai em Lacan e ao papel do pai na teoria freudiana.
– Freud concebe o Pai como um elemento fundamental na constituição da subjetividade, seja na forma do Pai da horda primitiva (Totem e Tabu), seja como aquele que introduz a Lei e o desejo no sujeito.
– A pergunta "O que é um Pai?" desloca o foco da figura concreta do pai para sua função simbólica, um ponto essencial para compreender a diferença entre religião e psicanálise.


4. A transição dos Deuses pagãos para o Pai monoteísta

"Lacan demonstra no referido Seminário, como o Pai da religião judaico-cristã sucede os Deuses pagãos do mundo grego, modificando a ordem simbólica na cultura, instalando o mistério, ou seja, a possibilidade de criação do porvir e produzindo a consequente responsabilidade pelo não-sabido."

– Antes do Deus monoteísta, a cultura ocidental estava estruturada pelos deuses pagãos, que possuíam características mais fragmentadas e antropomórficas.
– O Pai monoteísta representa uma unificação do poder divino, promovendo uma nova ordem simbólica.
– Esse Deus não se apresenta plenamente, mas se oculta no mistério, o que Lacan chama de "responsabilidade pelo não-sabido".
– Isso significa que, ao invés de oferecer respostas definitivas, a figura do Pai monoteísta cria um espaço para a interrogação e a construção do futuro.


5. A relação entre religare e interrogare

"Nesse sentido, o religare estabelece-se, então, em torno do interrogare."

– O termo religare (de onde vem "religião") significa reconexão, união com o sagrado.
– A inovação do texto está em sugerir que essa reconexão ocorre através da interrogação, e não pela convicção cega.
– Isso indica que a religião, assim como a psicanálise, lida com o mistério e o desconhecido, mas de modos distintos.


6. A diferença entre religião e psicanálise

"Contudo, a clínica e a elaboração teórica freud-lacaniana apontam para uma diferença entre religião e psicanálise através de uma mudança de foco nessa interrogação, passando da busca do conhecimento do Pai, para a interrogação sobre a função operatória do Pai."

– A grande distinção entre religião e psicanálise não está no fato de ambas lidarem com a interrogação, mas na forma como a interrogação é conduzida.
– A religião busca compreender o Pai como figura transcendental, como fonte de sentido e direção.
– Já a psicanálise não se interessa pelo Pai enquanto entidade, mas sim pela sua função simbólica e operatória, ou seja, como essa figura estrutura o sujeito e a cultura.
– A psicanálise desloca a questão do "quem" para o "como": não é o Pai como ser supremo que importa, mas sim o que essa função faz na psique e na sociedade.


7. O deslocamento da questão: do Pai ao além do Pai

"Enfim, se a religião dirige suas questões 'Para o Pai', a psicanálise dirige-as 'Para aquém e além do Pai', para a sua eficácia simbólica."

– Esse trecho sintetiza a diferença entre as duas abordagens:

  • A religião olha para o Pai, como um guia, um sentido transcendental.
  • A psicanálise olha para aquém e além do Pai, questionando seu funcionamento e seus efeitos.
    – Esse deslocamento faz com que a psicanálise não seja uma substituição da religião, mas uma prática que herda suas questões, reorganizando-as em um campo simbólico e subjetivo.

Conclusão: a psicanálise como interrogação sem resposta final

– O texto demonstra que a psicanálise não nega a influência da religião, mas a reinsere como um fenômeno simbólico e estruturante da subjetividade.
– A interrogação é o motor da psicanálise, enquanto a convicção é um elemento mais característico da religião.
– Freud e Lacan deslocam o foco do Pai como entidade para o Pai como operador simbólico, permitindo uma abordagem mais fluida e crítica.
– O pensamento psicanalítico, portanto, não se funda na certeza do Pai, mas na interrogação sobre sua função, o que o torna uma prática de abertura ao desconhecido, sem a necessidade de respostas absolutas.

Dessa forma, o texto reforça a ideia de que, quando se trata de religião (e da psicanálise), a interrogação sempre produz mais do que a convicção.




Despertador

relógio, clock
o mundo lança
seus primeiros acordes
está na hora de sonhar

*

Análise do poema Despertador

O poema Despertador apresenta um jogo entre tempo, som e sonho, invertendo a lógica habitual do despertar. Em vez de um despertador que chama à realidade, ele sugere que a hora de acordar é também a hora de sonhar. O poema, curto e sugestivo, brinca com as contradições entre vigília e sonho, tempo e imaginação.


1. O título: Despertador

– O título remete a um objeto funcional cujo propósito é chamar alguém à consciência, ao estado de alerta.
– No entanto, o poema propõe uma subversão desse papel: o despertar não leva à realidade, mas ao sonho.
– Essa inversão já antecipa um jogo de sentidos que permeia todo o texto.


2. Primeira linha: um tempo duplo

relógio, clock

– O uso bilíngue (relógio, clock) sugere uma ênfase no tempo enquanto construção simbólica e universal.
– O relógio, em qualquer idioma, é um instrumento de medição do tempo e está associado à rotina, à disciplina e ao mundo concreto.
– Essa nomeação dupla pode evocar a simultaneidade do tempo, a coexistência de diferentes formas de medi-lo ou vivê-lo.


3. Segunda linha: o mundo em movimento

o mundo lança

– O verbo "lança" sugere um movimento abrupto, um início enérgico.
– O mundo é apresentado como um agente ativo, algo que desperta e toma iniciativa.
– Isso reforça a ideia de que o tempo não é apenas uma medida estática, mas algo que impulsiona a experiência e o pensamento.


4. Terceira linha: o tempo como música

seus primeiros acordes

– A metáfora musical transforma o tempo em som, melodia, ritmo, sugerindo que o amanhecer (ou o início do dia) é uma composição que se inicia.
– A escolha do termo "acordes" conecta-se ao próprio significado de "acordar", criando um jogo sonoro e semântico.
– O tempo, então, não apenas marca o começo do dia, mas o inaugura como um evento estético, uma sinfonia em andamento.


5. Última linha: a inversão do despertar

está na hora de sonhar

– Aqui, o poema rompe com a expectativa de que acordar significa abandonar os sonhos.
– O despertar, ao invés de remeter ao pragmatismo, indica o início do sonho, sugerindo que a vigília pode ser tão imaginativa quanto o sono.
– Essa inversão traz um tom poético e até filosófico, desafiando a noção de que sonho e realidade são opostos.


Conclusão: um poema sobre o tempo como criação e sonho

– O poema subverte a ideia tradicional do despertador como um chamado para a realidade pragmática.
– O tempo não é apenas uma medida rígida, mas uma música, um fluxo dinâmico que impulsiona o imaginário.
– O último verso inverte a lógica da rotina, sugerindo que a vida desperta deve ser vivida como um sonho, cheia de possibilidades.
– O uso de poucos versos e palavras simples reforça a força simbólica do poema, deixando espaço para múltiplas interpretações.

Assim, Despertador nos convida a pensar no tempo não como uma prisão, mas como um convite à imaginação, à criação e ao sonho.




A casa própria

casa própria
alma imprópria
para maiores
menores
probidade

opróbrio
da viúva

ovo e uva
boa

houve
uma viúva
boa

saúva
saúda
a doutora

a verdade
única
com ou sem
túnica

foice

isso é apenas
um jogo de palavras

pás
larvas
enterram

a casa própria
a alma imprópria
sossega

*

Análise do poema A casa própria

O poema A casa própria trabalha com jogos sonoros, deslocamentos semânticos e repetições, criando um fluxo de significados que se alternam entre o concreto e o abstrato. A justaposição de palavras semelhantes, mas de sentidos distintos, gera uma atmosfera de instabilidade, como se a própria linguagem fosse um terreno em constante transformação.

O eixo central do poema parece ser a contraposição entre "casa própria" e "alma imprópria", sugerindo um jogo entre segurança material e inquietação existencial.


1. O título: A casa própria

– "Casa própria" remete ao desejo de estabilidade e posse, uma conquista valorizada socialmente.
– No entanto, ao longo do poema, essa segurança material é posta em contraste com uma alma que não se encaixa nas convenções.
– A relação entre propriedade e identidade já se insinua como uma tensão central no poema.


2. Primeira estrofe: a inadequação da alma

casa própria
alma imprópria
para maiores
menores
probidade

– O contraste entre "casa própria" (estável, concreta) e "alma imprópria" (instável, inadequada) marca uma contradição fundamental entre pertencimento material e deslocamento subjetivo.
– A enumeração "maiores / menores / probidade" sugere um deslocamento de significado:

  • "Maiores" e "menores" podem remeter a idades, hierarquias ou julgamentos morais.
  • "Probidade" (honestidade, retidão) se conecta à noção de adequação ética e social, algo que a "alma imprópria" parece questionar.

3. Segunda estrofe: o opróbrio da viúva

opróbrio
da viúva

– "Opróbrio" significa vergonha, desonra, sugerindo um peso social sobre a figura da viúva.
– A viúva é um arquétipo culturalmente carregado de luto e exclusão, indicando um possível eco de dor e marginalidade no poema.


4. Terceira estrofe: jogo fonético e memória

ovo e uva
boa
houve
uma viúva
boa

– Aqui, o poema se move para um jogo fonético, onde as palavras ecoam sonoramente (ovo, uva, houve, viúva).
– "Houve uma viúva boa" parece uma tentativa de resgatar ou afirmar algo positivo, mas o tom seco e enigmático da construção mantém a ambiguidade.


5. Quarta estrofe: um deslocamento inesperado

saúva
saúda
a doutora

– "Saúva" (formiga conhecida por sua força destrutiva) introduz um novo campo semântico, ligado ao trabalho incessante e ao consumo da terra.
– "Saúda" transforma o nome do inseto em verbo, criando um jogo entre o que devora e o que cumprimenta.
– "A doutora" pode ser qualquer figura de autoridade ou conhecimento, tornando a cena ainda mais aberta a interpretações.


6. Quinta estrofe: a verdade e o véu da religião

a verdade
única
com ou sem
túnica

– "A verdade única" sugere um tom absoluto, talvez irônico.
– "Com ou sem túnica" insinua que a verdade pode se apresentar religiosa ou secular, mas ainda assim continua sendo uma construção.


7. Sexta estrofe: o símbolo da morte

foice

– A palavra isolada "foice" carrega um peso forte:

  • Pode representar morte, remetendo à figura da ceifadora.
  • Pode remeter ao trabalho agrícola, reforçando a presença da saúva e a ideia de consumo e destruição.
  • Também pode evocar símbolos políticos, como o comunismo, que questiona a propriedade privada (tema do título).

8. Sétima estrofe: negação da linguagem e enterro

isso é apenas
um jogo de palavras

– Essa linha sugere autoconsciência poética, indicando que o poema brinca com a linguagem e com os sentidos.
– No entanto, ao longo do texto, percebemos que esse "jogo" tem implicações profundas sobre propriedade, identidade e finitude.


9. O encerramento: morte e sossego

pás
larvas
enterram
a casa própria
a alma imprópria
sossega

– "Pás" e "larvas" remetem ao ato de enterrar, encerrando o ciclo da matéria.
– A casa e a alma, antes opostas, agora são postas lado a lado como algo que deixa de existir.
– O verbo "sossega" traz um tom de fim, descanso, resolução, sugerindo que no fim tudo se iguala.


Conclusão: um poema sobre propriedade, identidade e morte

– O poema questiona a dicotomia entre material e subjetivo, sugerindo que a propriedade (casa própria) não garante pertencimento, e que a identidade (alma imprópria) pode ser sempre deslocada.
– O jogo de palavras cria repetições sonoras e associações inesperadas, intensificando a instabilidade dos significados.
– A figura da viúva, da formiga saúva e da foice reforça um campo simbólico de perda, trabalho incessante e finitude.
– No final, tudo é enterrado, e o "sossega" sugere que, no fim, a casa e a alma encontram o mesmo destino.

O poema, portanto, é uma meditação sobre posse, identidade e a inevitabilidade do fim, utilizando a linguagem como um campo de deslocamentos e contradições.




Ciliar

minha casa é simples
móveis simples
utensílios simples

minha alma é simples
móvel simples
cílio simples

ciliar

*

Análise do poema Ciliar

O poema Ciliar explora a relação entre simplicidade, movimento e fragilidade, jogando com a materialidade da casa e a leveza da alma. A palavra "ciliar", que dá título ao poema, remete tanto aos cílios (pequenos e delicados fios que protegem os olhos) quanto à ideia de limite, borda, contorno, sugerindo algo que está na fronteira entre o essencial e o etéreo.


1. O título: Ciliar

– A palavra "ciliar" pode ser associada a:

  • Cílios, pequenos pelos que protegem os olhos e piscam involuntariamente.
  • Margens, limites, referindo-se à borda do campo de visão ou ao limiar entre materialidade e imaterialidade.
  • A ideia de delicadeza e transitoriedade, pois cílios são frágeis, quase imperceptíveis, mas cumprem uma função protetora.
    – O título já antecipa a proposta do poema: uma reflexão sobre o que é essencial e leve, mas ainda assim fundamental.

2. Primeira estrofe: a casa e sua materialidade

minha casa é simples
móveis simples
utensílios simples

– A simplicidade da casa se reflete nos móveis e nos objetos, sugerindo um ambiente despojado, sem excessos.
– A repetição do termo "simples" reforça a austeridade e essencialidade, como se cada coisa tivesse apenas a função necessária, sem ornamentos supérfluos.
– A casa, neste contexto, é um espaço de funcionalidade e desapego, sem luxo ou ostentação.


3. Segunda estrofe: a alma como um espaço móvel

minha alma é simples
móvel simples
cílio simples

– O deslocamento da casa para a alma sugere uma continuidade entre o externo (material) e o interno (subjetivo).
– A alma, assim como os móveis da casa, é descrita como simples e móvel, indicando leveza, fluidez, capacidade de mudança.
– A transição do "móvel" para o "cílio" marca um movimento do macro para o micro, do espaço físico para a mínima unidade de proteção do corpo.
– O "cílio" pode representar a sensibilidade, o contato com o exterior, a proteção discreta, sugerindo que a alma, apesar de simples, é delicada e atenta.


4. O último verso: síntese e transcendência

ciliar

– O poema se encerra com uma palavra isolada, que sintetiza os elementos anteriores e amplia o campo de interpretação.
– "Ciliar" aqui pode ser lido como:

  • Um estado de leveza e proteção, como os cílios protegem os olhos do excesso de luz ou poeira.
  • Uma metáfora para a borda do existir, algo que está na margem, na fronteira entre o visível e o invisível.
  • A ideia de simplicidade como um limite tênue entre o essencial e o etéreo, entre o corpo e o mundo.
    – O fechamento com essa palavra única deixa um sentimento de suspensão e abertura, como se o poema permanecesse ecoando no leitor.

Conclusão: um poema sobre leveza, desapego e essência

– O poema constrói uma relação entre casa e alma, materialidade e subjetividade, sugerindo que a simplicidade externa reflete uma leveza interna.
– O jogo com os termos "móvel" e "cílio" enfatiza a mobilidade e a delicadeza, como se a alma estivesse em constante contato com o mundo, mas de maneira sutil.
– O título e o último verso expandem o sentido do poema, evocando a ideia de limite, fronteira e proteção invisível.
– O tom minimalista e a repetição de "simples" reforçam a busca por uma essência despojada, mas vital.

Assim, Ciliar é um poema que convida à reflexão sobre a leveza da existência e a importância do essencial, mostrando que, no fim, o que protege e sustenta pode ser tão sutil quanto um cílio.




Alucinógeno

comestível
venenoso
parasita

âncora
ventilador

micro
macro
ótico
enganador

é o cogumelo
doutor

*

Análise do poema Alucinógeno

O poema Alucinógeno trabalha com a dualidade e a ambiguidade do cogumelo, uma figura que pode ser tanto alimento quanto veneno, tanto real quanto alucinatória. A estrutura fragmentada e a justaposição de palavras contrastantes criam uma atmosfera de incerteza, sugerindo que o cogumelo transcende categorias fixas e desafia percepções.


1. O título: Alucinógeno

– A palavra "alucinógeno" remete a substâncias que alteram a percepção da realidade, evocando um estado de confusão ou revelação.
– Desde o título, já se estabelece um jogo entre realidade e ilusão, percepção e engano.
– O poema não menciona diretamente os efeitos alucinógenos do cogumelo, mas constrói uma atmosfera de estranheza e incerteza que reforça essa ideia.


2. Primeira estrofe: o cogumelo e suas naturezas ambíguas

comestível
venenoso
parasita

– O cogumelo pode ser nutritivo e mortal ao mesmo tempo, dependendo da espécie.
– Essa ambiguidade já sugere desejo e perigo, algo que atrai mas pode destruir.
– "Parasita" reforça a imagem do fungo como um organismo que se nutre de outros, expandindo o campo semântico para além do consumo humano e incluindo sua função ecológica.


3. Segunda estrofe: imagens inesperadas

âncora
ventilador

– Aqui, a estrutura do poema se torna mais enigmática, trazendo elementos que parecem desconectados.
– "Âncora" sugere algo pesado, fixo, que prende ao solo.
– "Ventilador", ao contrário, evoca movimento, dispersão, leveza.
– Essa oposição pode remeter à dualidade da experiência alucinógena, que pode tanto prender quanto libertar, fixar ou fazer girar a percepção.


4. Terceira estrofe: escalas de percepção e engano

micro
macro
ótico
enganador

– A sequência joga com escalas de percepção:

  • "Micro" e "macro" remetem ao infinitamente pequeno e ao imenso, sugerindo que o cogumelo pode pertencer a ambos os mundos.
  • "Ótico" traz a ideia da visão, da percepção sensorial, alinhando-se ao efeito alucinógeno.
  • "Enganador" reforça a natureza ilusória do que se vê, indicando que o cogumelo não é o que parece ser.

5. O desfecho: a identificação inesperada

é o cogumelo
doutor

– A conclusão surpreende ao dar ao cogumelo um tom de autoridade ou conhecimento, chamando-o de "doutor".
– Esse verso final pode ser interpretado de diversas formas:

  • O cogumelo como revelador de verdades, como em culturas xamânicas que usam substâncias alucinógenas para experiências místicas.
  • Ironia, ao atribuir conhecimento a algo que também é visto como venenoso e enganador.
  • Personificação, tornando o cogumelo um ser dotado de inteligência ou poder.

Conclusão: um poema sobre percepção, ilusão e conhecimento

– O poema constrói o cogumelo como um ser ambíguo, capaz de alimentar e envenenar, prender e libertar, expandir e confundir a percepção.
– O uso de palavras soltas e contrastantes gera um efeito fragmentado e alucinatório, remetendo à experiência alterada que o título sugere.
– O desfecho com "doutor" amplia as interpretações, abrindo espaço para o cogumelo como símbolo de conhecimento, engano ou transcendência.

Assim, Alucinógeno não apenas descreve o cogumelo, mas cria uma experiência poética que reflete sua própria essência: enigmática, fascinante e cheia de significados ocultos.




Persistência

recolhimento
esquecimento
cimento
e um cogumelo
entre as frestas
do pensamento

*

Análise do poema Persistência

O poema Persistência explora a ideia de tempo, esquecimento e renascimento, utilizando o cogumelo como um símbolo de resistência e surgimento inesperado. A estrutura curta e o jogo sonoro entre palavras reforçam a sensação de algo que perdura apesar das adversidades, emergindo no meio do esquecimento e do concreto.


1. O título: Persistência

– O título já antecipa a ideia central do poema: algo que resiste, que se mantém apesar das circunstâncias.
– A persistência pode ser tanto mental (memórias, pensamentos que voltam) quanto física (vida brotando em lugares inóspitos).


2. Primeira estrofe: camadas de tempo e esquecimento

recolhimento
esquecimento
cimento

– A sequência de palavras cria uma progressão que sugere isolamento, perda e endurecimento:

  • "Recolhimento" evoca introspecção, retirada, um estado de pausa ou silêncio.
  • "Esquecimento" sugere desaparecimento, erosão da memória.
  • "Cimento" traz a ideia de algo rígido, definitivo, uma tentativa de enterrar ou sufocar.

– Esse trecho pode ser interpretado tanto como um processo interno (memórias que tentam ser esquecidas) quanto externo (o concreto cobrindo a terra, a civilização apagando a natureza).


3. Segunda estrofe: a emergência inesperada

e um cogumelo
entre as frestas
do pensamento

– A imagem do cogumelo brotando entre as frestas quebra a rigidez do cimento.
– O cogumelo aqui simboliza o que resiste, o que retorna apesar do esquecimento e da dureza do tempo.
– Ele surge nas frestas do pensamento, sugerindo que mesmo o que tentamos apagar pode reaparecer de forma inesperada.
– Pode ser uma metáfora para ideias reprimidas, lembranças esquecidas ou sentimentos soterrados que, como um cogumelo, emergem nos espaços onde menos esperamos.


Conclusão: um poema sobre resistência e resiliência

– O poema constrói um contraste entre o esquecimento e a persistência, mostrando como algo pode reaparecer mesmo quando parece enterrado.
– O cogumelo é um símbolo de resistência, pois cresce em condições adversas, nascendo do esquecido e do inóspito.
– A imagem final sugere que o pensamento nunca é completamente apagado: sempre há frestas por onde ele pode ressurgir.
– O tom minimalista e a musicalidade dos versos reforçam a sensação de um ciclo natural, onde o que é soterrado pode um dia voltar à superfície.

Assim, Persistência é um poema sobre memória, tempo e a inevitabilidade do retorno, mostrando que, mesmo sob o cimento do esquecimento, sempre há algo que insiste em existir.




28/04/2013

Visto e reparado

vejo e sou visto
existo?
ou simplesmente insisto?

*

Análise do poema Visto e reparado

O poema Visto e reparado trabalha com a relação entre visão, existência e persistência, explorando um questionamento essencial sobre a identidade e a percepção. A construção minimalista e interrogativa cria um efeito reflexivo, colocando o leitor diante de uma dúvida filosófica: existo porque sou visto ou apenas porque insisto?


1. O título: Visto e reparado

– O título sugere dois significados:

  • "Visto" como ser percebido, ser olhado pelos outros.
  • "Reparado" pode significar tanto notado (alguém que chama atenção) quanto consertado (algo que foi corrigido, ajustado).
    – Esse jogo de significados já antecipa a questão do poema: a existência está vinculada ao olhar do outro?

2. Primeiro verso: a relação entre ver e ser visto

vejo e sou visto

– O verso sugere uma troca mútua, onde o sujeito da fala tanto percebe o mundo quanto é percebido por ele.
– Há um eco da teoria fenomenológica da percepção: nossa existência se dá na interação com os outros.
– Também pode remeter à psicanálise, especialmente à ideia de ser reconhecido pelo olhar do outro como um sujeito.


3. Segundo verso: a dúvida sobre a existência

existo?

– A interrogação introduz uma ruptura, um questionamento sobre a própria condição do ser.
– Se "vejo e sou visto", então deveria haver uma confirmação da existência, mas a dúvida persiste.
– O verso curto e isolado reforça o impacto da questão, tornando-a central no poema.


4. Terceiro verso: a insistência como forma de existência

ou simplesmente insisto?

– Aqui, o poema desloca a questão do ser para a ação contínua.
– "Insistir" pode sugerir:

  • Um ato de resistência, um desejo de se afirmar mesmo sem garantias.
  • A ideia de que a existência não é dada, mas construída no esforço diário.
  • Um eco do pensamento existencialista, onde a identidade não é fixa, mas um processo contínuo de afirmação.

Conclusão: um poema sobre percepção, identidade e persistência

– O poema coloca o sujeito diante da incerteza sobre a própria existência, questionando se ser visto é suficiente para existir.
– A relação entre ver e ser visto sugere que a identidade é construída na interação com os outros.
– O uso da interrogação e do verbo "insistir" remete à angústia existencial: a existência pode ser uma questão de percepção ou apenas de resistência?
– A economia de palavras e a estrutura simples intensificam o impacto filosófico do poema, deixando a dúvida aberta para o leitor.

Assim, Visto e reparado reflete sobre a fragilidade da existência e o papel do olhar do outro na construção da identidade, levantando uma questão essencial: existo porque sou percebido ou porque persisto?