30/04/2013

A casa própria

casa própria
alma imprópria
para maiores
menores
probidade

opróbrio
da viúva

ovo e uva
boa

houve
uma viúva
boa

saúva
saúda
a doutora

a verdade
única
com ou sem
túnica

foice

isso é apenas
um jogo de palavras

pás
larvas
enterram

a casa própria
a alma imprópria
sossega

*

Análise do poema A casa própria

O poema A casa própria trabalha com jogos sonoros, deslocamentos semânticos e repetições, criando um fluxo de significados que se alternam entre o concreto e o abstrato. A justaposição de palavras semelhantes, mas de sentidos distintos, gera uma atmosfera de instabilidade, como se a própria linguagem fosse um terreno em constante transformação.

O eixo central do poema parece ser a contraposição entre "casa própria" e "alma imprópria", sugerindo um jogo entre segurança material e inquietação existencial.


1. O título: A casa própria

– "Casa própria" remete ao desejo de estabilidade e posse, uma conquista valorizada socialmente.
– No entanto, ao longo do poema, essa segurança material é posta em contraste com uma alma que não se encaixa nas convenções.
– A relação entre propriedade e identidade já se insinua como uma tensão central no poema.


2. Primeira estrofe: a inadequação da alma

casa própria
alma imprópria
para maiores
menores
probidade

– O contraste entre "casa própria" (estável, concreta) e "alma imprópria" (instável, inadequada) marca uma contradição fundamental entre pertencimento material e deslocamento subjetivo.
– A enumeração "maiores / menores / probidade" sugere um deslocamento de significado:

  • "Maiores" e "menores" podem remeter a idades, hierarquias ou julgamentos morais.
  • "Probidade" (honestidade, retidão) se conecta à noção de adequação ética e social, algo que a "alma imprópria" parece questionar.

3. Segunda estrofe: o opróbrio da viúva

opróbrio
da viúva

– "Opróbrio" significa vergonha, desonra, sugerindo um peso social sobre a figura da viúva.
– A viúva é um arquétipo culturalmente carregado de luto e exclusão, indicando um possível eco de dor e marginalidade no poema.


4. Terceira estrofe: jogo fonético e memória

ovo e uva
boa
houve
uma viúva
boa

– Aqui, o poema se move para um jogo fonético, onde as palavras ecoam sonoramente (ovo, uva, houve, viúva).
– "Houve uma viúva boa" parece uma tentativa de resgatar ou afirmar algo positivo, mas o tom seco e enigmático da construção mantém a ambiguidade.


5. Quarta estrofe: um deslocamento inesperado

saúva
saúda
a doutora

– "Saúva" (formiga conhecida por sua força destrutiva) introduz um novo campo semântico, ligado ao trabalho incessante e ao consumo da terra.
– "Saúda" transforma o nome do inseto em verbo, criando um jogo entre o que devora e o que cumprimenta.
– "A doutora" pode ser qualquer figura de autoridade ou conhecimento, tornando a cena ainda mais aberta a interpretações.


6. Quinta estrofe: a verdade e o véu da religião

a verdade
única
com ou sem
túnica

– "A verdade única" sugere um tom absoluto, talvez irônico.
– "Com ou sem túnica" insinua que a verdade pode se apresentar religiosa ou secular, mas ainda assim continua sendo uma construção.


7. Sexta estrofe: o símbolo da morte

foice

– A palavra isolada "foice" carrega um peso forte:

  • Pode representar morte, remetendo à figura da ceifadora.
  • Pode remeter ao trabalho agrícola, reforçando a presença da saúva e a ideia de consumo e destruição.
  • Também pode evocar símbolos políticos, como o comunismo, que questiona a propriedade privada (tema do título).

8. Sétima estrofe: negação da linguagem e enterro

isso é apenas
um jogo de palavras

– Essa linha sugere autoconsciência poética, indicando que o poema brinca com a linguagem e com os sentidos.
– No entanto, ao longo do texto, percebemos que esse "jogo" tem implicações profundas sobre propriedade, identidade e finitude.


9. O encerramento: morte e sossego

pás
larvas
enterram
a casa própria
a alma imprópria
sossega

– "Pás" e "larvas" remetem ao ato de enterrar, encerrando o ciclo da matéria.
– A casa e a alma, antes opostas, agora são postas lado a lado como algo que deixa de existir.
– O verbo "sossega" traz um tom de fim, descanso, resolução, sugerindo que no fim tudo se iguala.


Conclusão: um poema sobre propriedade, identidade e morte

– O poema questiona a dicotomia entre material e subjetivo, sugerindo que a propriedade (casa própria) não garante pertencimento, e que a identidade (alma imprópria) pode ser sempre deslocada.
– O jogo de palavras cria repetições sonoras e associações inesperadas, intensificando a instabilidade dos significados.
– A figura da viúva, da formiga saúva e da foice reforça um campo simbólico de perda, trabalho incessante e finitude.
– No final, tudo é enterrado, e o "sossega" sugere que, no fim, a casa e a alma encontram o mesmo destino.

O poema, portanto, é uma meditação sobre posse, identidade e a inevitabilidade do fim, utilizando a linguagem como um campo de deslocamentos e contradições.




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