com quantos rivotris
se faz um borderline...
Análise
Este poema é uma reflexão afiada e provocativa sobre a relação entre saúde mental e medicamentos, carregada de ironia e questionamentos existenciais. Ele aborda a luta interna de quem enfrenta transtornos psíquicos, a medicalização da vida e as ambivalências do tratamento farmacológico. A linguagem direta, mesclada com uma ironia amarga, expõe as tensões entre alívio e controle, diagnóstico e identidade.
Análise por Estrofes:
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"vou te mostrar / com quantos rivotris / se faz um borderline..."
- Tom confessional e irônico: O verso inicia com uma promessa de revelação ("vou te mostrar"), que evoca tanto um convite à compreensão quanto uma provocação. A menção ao "Rivotril", um medicamento amplamente usado no tratamento de transtornos mentais, reflete a dependência e a omnipresença dos fármacos na abordagem psiquiátrica contemporânea.
- Construção do sofrimento: A expressão "com quantos rivotris se faz um borderline" subverte a ideia de construção, sugerindo que a identidade de alguém com transtorno de personalidade borderline é moldada (ou agravada) pelos medicamentos. Há uma crítica implícita ao reducionismo farmacológico que ignora os aspectos subjetivos e sociais do sofrimento.
- Ironia amarga: A construção parodia a expressão "com quantos paus se faz uma canoa", transformando uma metáfora popular em um comentário ácido sobre o impacto dos medicamentos na subjetividade.
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"quem veio primeiro?"
- Questionamento fundamental: Este verso remete ao dilema do tipo "ovo ou galinha", mas aplicado à saúde mental. Ele levanta dúvidas sobre a origem do problema: seria a disritmia psíquica (o transtorno em si) ou a dependência dos medicamentos que molda a experiência do indivíduo?
- Incerteza existencial: A pergunta deixa claro que a relação entre doença e tratamento é complexa e frequentemente circular, sem respostas fáceis.
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"o fármaco / ou a disritmia?"
- Dualidade entre causa e efeito: O poema posiciona o "fármaco" e a "disritmia" como elementos interdependentes, destacando a dificuldade de determinar se os medicamentos são um alívio necessário ou um elemento que perpetua a disfunção.
- Crítica à medicalização: Ao colocar o fármaco antes da disritmia na ordem dos versos, o poema sugere uma crítica à psiquiatria contemporânea, onde a prescrição de medicamentos muitas vezes precede uma compreensão mais profunda das causas do sofrimento.
Temas Centrais:
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Medicalização da Subjetividade:
- O poema reflete sobre como os medicamentos moldam não apenas o tratamento dos transtornos mentais, mas também a forma como os indivíduos se percebem e são percebidos.
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Ironia da Cura:
- Há uma ironia subjacente na dependência dos "Rivotris" (referência ao clonazepam), como se o remédio, ao mesmo tempo que oferece alívio, criasse uma nova camada de sofrimento ou questionamento.
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Identidade e Transtorno:
- A relação entre ser "borderline" e o uso de fármacos sugere que a identidade da pessoa é, em parte, moldada pelo tratamento, gerando reflexões sobre autenticidade e o peso do diagnóstico.
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Circularidade entre Doença e Tratamento:
- O poema problematiza a relação entre transtorno e medicamento, sugerindo que, em muitos casos, o tratamento não resolve, mas complica ou redefine a experiência da doença.
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Humor Negro e Crítica Social:
- O tom ácido e irônico do poema aponta para uma crítica mais ampla à cultura da medicalização e à incapacidade de lidar com o sofrimento humano de formas mais holísticas.
Estilo e Linguagem:
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Ironia e Ambiguidade:
- A ironia é a força motriz do poema, especialmente na frase "com quantos rivotris se faz um borderline". O humor ácido desarma o leitor, mas também provoca uma reflexão séria sobre os limites do tratamento farmacológico.
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Economia de Palavras:
- O poema utiliza uma linguagem enxuta, mas repleta de significados, deixando espaço para múltiplas interpretações.
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Ritmo Fragmentado:
- Os versos curtos e a divisão em estrofes fragmentam a leitura, refletindo a natureza dissonante da experiência abordada (tanto a psíquica quanto a farmacológica).
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Referências Cotidianas:
- O uso de termos como "Rivotril" e "borderline" conecta o poema à realidade contemporânea, onde transtornos mentais e medicamentos são amplamente discutidos e, muitas vezes, banalizados.
Considerações Finais:
"depois dos fármacos" é um poema que combina ironia e profundidade para questionar a relação entre saúde mental, medicamentos e identidade. Ele apresenta um retrato crítico da medicalização do sofrimento psíquico, expondo as ambiguidades e paradoxos do tratamento farmacológico. Com humor negro e uma linguagem precisa, o poema provoca uma reflexão sobre como a subjetividade é moldada por diagnósticos e remédios, ao mesmo tempo que levanta questões mais amplas sobre a humanidade e suas formas de lidar com o sofrimento. É uma obra que desafia, provoca e convida o leitor a reconsiderar suas próprias percepções sobre saúde mental.
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