26/06/2014

depois dos fármacos

vou te mostrar
com quantos rivotris
se faz um borderline...

quem veio primeiro?
o fármaco
ou a disritmia?
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Análise

Este poema é uma reflexão afiada e provocativa sobre a relação entre saúde mental e medicamentos, carregada de ironia e questionamentos existenciais. Ele aborda a luta interna de quem enfrenta transtornos psíquicos, a medicalização da vida e as ambivalências do tratamento farmacológico. A linguagem direta, mesclada com uma ironia amarga, expõe as tensões entre alívio e controle, diagnóstico e identidade.


Análise por Estrofes:

  1. "vou te mostrar / com quantos rivotris / se faz um borderline..."

    • Tom confessional e irônico: O verso inicia com uma promessa de revelação ("vou te mostrar"), que evoca tanto um convite à compreensão quanto uma provocação. A menção ao "Rivotril", um medicamento amplamente usado no tratamento de transtornos mentais, reflete a dependência e a omnipresença dos fármacos na abordagem psiquiátrica contemporânea.
    • Construção do sofrimento: A expressão "com quantos rivotris se faz um borderline" subverte a ideia de construção, sugerindo que a identidade de alguém com transtorno de personalidade borderline é moldada (ou agravada) pelos medicamentos. Há uma crítica implícita ao reducionismo farmacológico que ignora os aspectos subjetivos e sociais do sofrimento.
    • Ironia amarga: A construção parodia a expressão "com quantos paus se faz uma canoa", transformando uma metáfora popular em um comentário ácido sobre o impacto dos medicamentos na subjetividade.
  2. "quem veio primeiro?"

    • Questionamento fundamental: Este verso remete ao dilema do tipo "ovo ou galinha", mas aplicado à saúde mental. Ele levanta dúvidas sobre a origem do problema: seria a disritmia psíquica (o transtorno em si) ou a dependência dos medicamentos que molda a experiência do indivíduo?
    • Incerteza existencial: A pergunta deixa claro que a relação entre doença e tratamento é complexa e frequentemente circular, sem respostas fáceis.
  3. "o fármaco / ou a disritmia?"

    • Dualidade entre causa e efeito: O poema posiciona o "fármaco" e a "disritmia" como elementos interdependentes, destacando a dificuldade de determinar se os medicamentos são um alívio necessário ou um elemento que perpetua a disfunção.
    • Crítica à medicalização: Ao colocar o fármaco antes da disritmia na ordem dos versos, o poema sugere uma crítica à psiquiatria contemporânea, onde a prescrição de medicamentos muitas vezes precede uma compreensão mais profunda das causas do sofrimento.

Temas Centrais:

  1. Medicalização da Subjetividade:

    • O poema reflete sobre como os medicamentos moldam não apenas o tratamento dos transtornos mentais, mas também a forma como os indivíduos se percebem e são percebidos.
  2. Ironia da Cura:

    • Há uma ironia subjacente na dependência dos "Rivotris" (referência ao clonazepam), como se o remédio, ao mesmo tempo que oferece alívio, criasse uma nova camada de sofrimento ou questionamento.
  3. Identidade e Transtorno:

    • A relação entre ser "borderline" e o uso de fármacos sugere que a identidade da pessoa é, em parte, moldada pelo tratamento, gerando reflexões sobre autenticidade e o peso do diagnóstico.
  4. Circularidade entre Doença e Tratamento:

    • O poema problematiza a relação entre transtorno e medicamento, sugerindo que, em muitos casos, o tratamento não resolve, mas complica ou redefine a experiência da doença.
  5. Humor Negro e Crítica Social:

    • O tom ácido e irônico do poema aponta para uma crítica mais ampla à cultura da medicalização e à incapacidade de lidar com o sofrimento humano de formas mais holísticas.

Estilo e Linguagem:

  1. Ironia e Ambiguidade:

    • A ironia é a força motriz do poema, especialmente na frase "com quantos rivotris se faz um borderline". O humor ácido desarma o leitor, mas também provoca uma reflexão séria sobre os limites do tratamento farmacológico.
  2. Economia de Palavras:

    • O poema utiliza uma linguagem enxuta, mas repleta de significados, deixando espaço para múltiplas interpretações.
  3. Ritmo Fragmentado:

    • Os versos curtos e a divisão em estrofes fragmentam a leitura, refletindo a natureza dissonante da experiência abordada (tanto a psíquica quanto a farmacológica).
  4. Referências Cotidianas:

    • O uso de termos como "Rivotril" e "borderline" conecta o poema à realidade contemporânea, onde transtornos mentais e medicamentos são amplamente discutidos e, muitas vezes, banalizados.

Considerações Finais:

"depois dos fármacos" é um poema que combina ironia e profundidade para questionar a relação entre saúde mental, medicamentos e identidade. Ele apresenta um retrato crítico da medicalização do sofrimento psíquico, expondo as ambiguidades e paradoxos do tratamento farmacológico. Com humor negro e uma linguagem precisa, o poema provoca uma reflexão sobre como a subjetividade é moldada por diagnósticos e remédios, ao mesmo tempo que levanta questões mais amplas sobre a humanidade e suas formas de lidar com o sofrimento. É uma obra que desafia, provoca e convida o leitor a reconsiderar suas próprias percepções sobre saúde mental.

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