
Nem os sons da noite
Hoje eles por aqui não apareceram
Não há sono com ou sem sonhos
Não se escuta os grilos
Os sapos
Os cães de guarda
Os vira-latas
Em torno da casa um silêncio espesso
Em torno do coração e dos pensamentos
Os tecidos tornam-se tênues
Os órgãos, barulhentos
Ruidosos
Os pensamentos acendem-se
Quase falam
Quanto menor a atividade lá fora
Maior a atividade cá dentro
E esta cresce caótica
Frenética
Últimos suspiros de uma super nova
No vácuo
Vácuo
Recuo
Uma conta por pagar
Cantam grilos
Um trabalho por entregar
Coaxam sapos
Um chefe por pajear
Rosnam cães de guarda
Um tesão por exercitar
Ruídos de gatos, latas viradas
E o sono chega
Será com ou sem sonhos?
*
O poema explora a experiência da insônia, combinando uma descrição sensorial rica e um fluxo de pensamento caótico. Ele transita entre o silêncio externo e o tumulto interno, revelando como a ausência de estímulos exteriores intensifica a atividade mental. A jornada do eu lírico é marcada por uma escalada frenética que culmina em uma espécie de rendição ao sono, com uma indagação final que reforça a incerteza sobre a qualidade desse repouso.
Estrutura e Desenvolvimento:
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Introdução: A ausência do sono e dos sons
- O poema inicia com a constatação de que o sono não veio e de que os sons habituais da noite também estão ausentes. Este silêncio externo serve como gatilho para o tumulto interno que será descrito mais adiante.
- Atmosfera inicial: O tom é de estranheza e desconforto, pois o silêncio quebra a expectativa de normalidade noturna.
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Contraste entre o externo e o interno
- A segunda parte do poema estabelece uma oposição entre o silêncio ao redor ("em torno da casa um silêncio espesso") e a crescente atividade dentro do corpo e da mente ("os tecidos tornam-se tênues", "os órgãos, barulhentos").
- Amplificação interna: A ausência de estímulos externos intensifica a percepção interna, com pensamentos e sensações corporais ganhando destaque e tornando-se quase insuportáveis.
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A escalada frenética da mente
- A metáfora da supernova ("últimos suspiros de uma super nova no vácuo") evoca a explosão de ideias e sentimentos que ocorre durante a insônia, quando a mente parece expandir-se de maneira desordenada.
- Paralelo cósmico: A comparação com o fenômeno astronômico transmite a grandiosidade e o caos dos pensamentos, além de sugerir um colapso iminente.
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A intrusão das obrigações cotidianas
- A partir do verso "uma conta por pagar", o poema introduz elementos concretos da vida diária que invadem o espaço do silêncio e da insônia. Obrigações como trabalho, relacionamentos e desejos não atendidos são representadas por sons personificados (grilos, sapos, cães).
- Personificação dos sons: Os animais noturnos simbolizam preocupações e ansiedades cotidianas, mostrando como a mente associa o silêncio externo a ruídos internos de responsabilidades.
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O retorno dos sons e a chegada do sono
- Os sons dos grilos, sapos, cães e gatos reaparecem, trazendo uma espécie de normalidade ao ambiente noturno. Este retorno parece acalmar a mente, permitindo que o sono finalmente chegue.
- Ambiguidade final: O poema encerra com uma pergunta ("Será com ou sem sonhos?"), sugerindo que, embora o sono tenha chegado, há incerteza sobre sua qualidade ou profundidade.
Temas Centrais:
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Insônia e Caos Interno:
- O poema retrata a insônia como um estado de hiperatividade mental desencadeado pela ausência de estímulos externos. A mente, desprovida de distrações, torna-se um espaço de caos e introspecção frenética.
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Contraste entre Silêncio e Ruído:
- O silêncio externo intensifica o ruído interno, com os pensamentos e sensações corporais ganhando protagonismo em um cenário de ausência sonora.
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A Interseção entre Cotidiano e Subjetividade:
- As preocupações cotidianas ("conta por pagar", "trabalho por entregar") misturam-se com as sensações subjetivas, mostrando como a vida prática e a vida interior se entrelaçam durante a insônia.
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Ciclo e Temporalidade da Noite:
- O poema segue um ciclo que começa com o silêncio absoluto, passa pela escalada do caos interno e termina com a chegada do sono, sugerindo um padrão recorrente na experiência humana.
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A Ambiguidade do Sono:
- A pergunta final ("Será com ou sem sonhos?") reflete a incerteza sobre o alívio que o sono pode trazer. Ele é apresentado não como uma solução definitiva, mas como uma continuação da luta entre silêncio e ruído.
Estilo e Linguagem:
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Uso de Imagens Sensoriais:
- O poema combina descrições sensoriais ("silêncio espesso", "tecidos tênues", "ruídos de gatos") com metáforas cósmicas ("super nova") para transmitir a intensidade da experiência.
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Estrutura Fragmentada:
- Os versos curtos e a organização em blocos refletem o fluxo de pensamentos desordenados que caracteriza a insônia.
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Personificação e Simbolismo:
- Os sons noturnos são personificados, transformando animais e ruídos em metáforas para ansiedades e desejos reprimidos.
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Ritmo Crescente:
- O poema tem uma progressão rítmica que acompanha a escalada do caos interno, culminando em uma espécie de clímax antes do retorno ao estado de calma.
Considerações Finais:
"Com ou Sem Sonhos" é um poema que captura a experiência universal da insônia com riqueza sensorial e profundidade emocional. Ele explora o contraste entre silêncio e ruído, dentro e fora, utilizando metáforas cósmicas e personificações para descrever a batalha interna do eu lírico. A conclusão ambígua reforça a ideia de que o sono, mesmo desejado, é um estado incerto, repleto de possibilidades de sonhos ou vazio. O poema é, ao mesmo tempo, um retrato vívido da mente inquieta e uma reflexão sobre a relação entre o cotidiano e o inconsciente.