16/01/2025

Solidão rural e urbana

"Um dia sem dizer o que e a quem, montei a cavalo e saí escapado. Eu marchei há duas léguas e o mundo estava vazio. Boi e boi e campo e campo. Quanto mais ando querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago (...)"
Guimarães Rosa

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Análise

Este trecho de Guimarães Rosa captura, com uma linguagem ao mesmo tempo simples e profundamente simbólica, o sentimento de isolamento e a busca por conexão humana. A passagem é marcada pelo estilo característico do autor, que combina a oralidade do sertanejo com reflexões existenciais universais.

Análise:

  1. Ação inicial: "Um dia sem dizer o que e a quem, montei a cavalo e saí escapado."

    • Impulso e fuga: A narrativa começa com uma ação que sugere um movimento abrupto, quase instintivo. "Sem dizer o que e a quem" indica a ausência de explicação ou justificativa, revelando uma necessidade interna, talvez de liberdade ou de ruptura com algo opressor.
    • Montei a cavalo: O cavalo, um símbolo clássico de deslocamento e liberdade no universo sertanejo, reforça a ideia de transição e busca.
  2. "Eu marchei há duas léguas e o mundo estava vazio."

    • Solidão ampliada: Apesar da distância percorrida, o protagonista não encontra o que procura. A palavra "vazio" reforça o contraste entre o movimento físico e o isolamento emocional ou existencial.
    • Repetição e monotonia: A expressão "Boi e boi e campo e campo" acentua a ideia de repetição e imutabilidade do cenário. O protagonista parece preso em uma paisagem que reflete o seu estado interno.
  3. "Quanto mais ando querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago."

    • Paradoxo da busca: O trecho expressa um paradoxo: a busca por pessoas, em vez de levar à conexão, parece conduzir a um isolamento maior. A palavra "vago" sugere não apenas a ausência de pessoas, mas também a falta de sentido ou direção.
    • Sozinho do vago: A construção inusitada "sozinho do vago" é um exemplo do gênio linguístico de Rosa, que cria expressões inéditas para dar conta de sentimentos complexos. Aqui, a solidão é associada a uma sensação de dispersão e indefinição.

Temas Centrais:

  • Solidão Existencial: O texto transcende o espaço sertanejo para abordar a solidão como uma condição universal. A busca do personagem por companhia reflete o desejo humano de conexão, mas também a dificuldade de encontrá-la em um mundo que pode parecer indiferente.
  • Natureza e Imensidão: A descrição do ambiente ("boi e boi e campo e campo") ressalta a vastidão do sertão, que, paradoxalmente, em vez de acolher, intensifica a sensação de isolamento.
  • Movimento e Estagnação: O deslocamento físico do protagonista contrasta com sua imobilidade emocional. Ele marcha, mas não parece sair do lugar em termos de suas necessidades internas.

Estilo e Linguagem:

  • Oralidade: A estrutura sintática do trecho e as repetições ("boi e boi", "campo e campo") remetem à fala sertaneja, aproximando o leitor do universo cultural e psicológico do personagem.
  • Simbolismo: O "vazio" e o "sozinho do vago" extrapolam o significado literal e ganham camadas filosóficas, explorando a dificuldade de encontrar propósito ou pertencimento.
  • Paradoxos e ambivalências: A escrita de Rosa se caracteriza pela convivência de opostos, como movimento e vazio, busca e solidão, preenchendo o texto de tensão e profundidade.

Reflexão:

Este trecho de Rosa é um convite à introspecção e à empatia. Ele nos coloca diante do mistério do humano: o impulso de buscar significado e conexão em um mundo que, muitas vezes, parece indiferente. O "sozinho do vago" pode ser lido como um eco da condição humana, em que o desejo de encontrar sentido muitas vezes revela a vastidão do que ainda não se compreende.


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