A frase de Guimarães Rosa, "A gente vive muito em voz alta, mas às vezes a gente não se ouve," é uma reflexão poética e profundamente filosófica sobre a desconexão interna que permeia a vida moderna e a condição humana. Ela evoca a ideia de que o ato de "viver em voz alta" — agir, falar, expor-se ao mundo — muitas vezes ocorre sem uma escuta genuína de si mesmo. Essa análise pode ser explorada em várias dimensões, desde a psicológica até a existencial.
Dimensão Psicológica
Na psicologia, a frase pode ser associada ao conceito de alienação de si mesmo, um estado em que o sujeito se desconecta de suas emoções, desejos e necessidades internas, muitas vezes devido às pressões externas e às demandas sociais. Falar "em voz alta" pode ser entendido como o excesso de exteriorização, em que a pessoa busca validação no olhar ou na escuta do outro, mas negligencia a própria escuta interna. Nesse sentido, a frase remete à dificuldade de introjeção, ou seja, de voltar-se para dentro e compreender o que está acontecendo no próprio mundo psíquico.
A Psicanálise, especialmente na vertente lacaniana, oferece uma perspectiva interessante. Lacan propõe que o sujeito está estruturado pelo simbólico, pela linguagem, e muitas vezes alienado no campo do Outro, o grande Outro representado pelas normas sociais e culturais. "Viver em voz alta" pode simbolizar essa alienação: o sujeito fala, mas fala para o Outro, sem escutar as demandas do inconsciente, que se manifesta nos lapsos, nos sintomas e nos sonhos. O "não se ouvir", portanto, pode ser interpretado como a incapacidade de acessar o que há de mais singular no sujeito — o seu desejo.
Dimensão Existencial
Existencialmente, a frase sugere a tensão entre ser e parecer. Viver "em voz alta" aponta para uma existência voltada para fora, em que o "eu" se perde na performance, na aparência, na constante necessidade de afirmar-se no mundo. No entanto, "não se ouvir" denuncia a ausência de autenticidade e introspecção. Segundo autores existencialistas como Heidegger, a vida autêntica exige uma abertura para o próprio "ser", uma escuta do que ressoa no mais íntimo do sujeito, algo que é frequentemente abafado pela superficialidade do cotidiano e pelas distrações modernas.
Dimensão Social e Cultural
A frase também pode ser lida como uma crítica à sociedade contemporânea, marcada pelo ruído incessante e pela hiperexposição. Em um mundo onde somos constantemente convidados a nos expressar — nas redes sociais, nos discursos públicos, nas interações cotidianas —, a introspecção torna-se cada vez mais rara. Vivemos "em voz alta" ao narrar nossas vidas em tempo real, mas essa constante exteriorização pode levar a uma perda do silêncio necessário para a autoescuta. Guimarães Rosa, com sua sensibilidade poética, parece sugerir que esse ruído externo nos afasta de uma conexão mais profunda com nosso eu interior.
Dimensão Ética e Espiritual
No campo ético e espiritual, a frase aponta para a importância do silêncio como meio de autoconhecimento e transformação. Tradições como o Zen Budismo enfatizam a prática do silêncio e da meditação como formas de ouvir o que a mente agitada e o ego frequentemente ocultam. "Não se ouvir" implica estar perdido no barulho do mundo e, consequentemente, distante da essência do ser. Nesse sentido, a frase pode ser lida como um chamado à introspecção, ao cultivo de momentos de silêncio em que se possa, finalmente, ouvir a própria voz.
Conclusão
"A gente vive muito em voz alta, mas às vezes a gente não se ouve" é uma sentença que convida à reflexão sobre como conduzimos nossas vidas. Ela evidencia a contradição entre a necessidade de comunicar-se com o mundo e a falta de escuta interior. Psicologicamente, existencialmente e espiritualmente, a frase nos lembra da importância de pausar, silenciar e voltar-se para dentro. Como em toda grande obra de Guimarães Rosa, há aqui um convite à profundidade e à reconexão com aquilo que, no fundo, somos.
 
 
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