12/05/2013

joguete



entre o risco e o rabisco
o cisco no Ich
expondo outro risco
rabo de foguete do Id

*

Análise do poema joguete

O poema joguete apresenta um jogo linguístico e conceitual que articula imagens do desenho e da psicanálise freudiana para explorar a ideia de risco, instabilidade e impulsividade. Seu título sugere algo ou alguém que é manipulado ou lançado ao acaso, como um brinquedo ou um objeto sem controle próprio.


1. O título: joguete

– "Joguete" pode significar brinquedo, mas também algo ou alguém que é manipulado por forças externas.
– Esse título antecipa a ideia de ser movido por impulsos, sem total controle sobre si, o que ressoa com as referências psicanalíticas no poema.


2. Primeira linha: a tensão entre o controle e a desordem

entre o risco e o rabisco

– O termo "risco" pode ter múltiplos sentidos:

  1. Traço gráfico, um elemento organizado do desenho.
  2. Perigo, algo incerto ou arriscado.

– Já "rabisco" remete a um traço caótico, descontrolado, infantil ou espontâneo.
– A construção "entre o risco e o rabisco" sugere uma oscilação entre ordem e desordem, planejamento e impulso, evocando tanto a criação artística quanto o estado psicológico de um sujeito em conflito.


3. Segunda linha: um obstáculo na consciência

o cisco no Ich

– "Cisco" remete a algo pequeno, um incômodo no olho, um fator de perturbação.
– "Ich" (eu, em alemão) é uma referência ao Eu (Ego) da teoria freudiana, a instância psíquica que busca o equilíbrio entre os impulsos do Id e as exigências do Superego.
– "O cisco no Ich" sugere que há uma perturbação na consciência, uma dificuldade ou algo que impede a visão clara e racional do sujeito.


4. Terceira linha: a exposição do risco interno

expondo outro risco

– A palavra "expondo" indica que algo antes oculto ou reprimido agora se torna visível.
– Esse "outro risco" pode ser tanto um perigo emocional quanto um traço impulsivo do inconsciente que se manifesta inesperadamente.


5. Quarta linha: o impulso incontrolável do Id

rabo de foguete do Id

– A expressão "rabo de foguete" sugere algo descontrolado, explosivo, difícil de segurar ou parar.
– O Id, na psicanálise freudiana, representa os desejos primitivos, os impulsos irracionais e inconscientes.
– "Rabo de foguete do Id" indica que o sujeito está sendo levado por forças inconscientes intensas, sem controle sobre seus desejos e ações.


Conclusão: um poema sobre o conflito psíquico e o descontrole

– O poema articula a relação entre razão e impulso, controle e caos, utilizando imagens visuais e referências psicanalíticas.
– A oscilação entre "risco e rabisco" reflete a luta entre ordem e desordem na psique.
– O "cisco no Ich" representa um incômodo no Eu, um pequeno elemento que pode levar à instabilidade.
– O "rabo de foguete do Id" simboliza a perda de controle diante das forças do inconsciente, reforçando a ideia do sujeito como um joguete, movido por impulsos internos que não consegue conter.
– O poema tem um tom lúdico, mas também carrega um subtexto existencial e psicanalítico, sugerindo que a identidade humana está sempre à mercê de riscos e impulsos imprevisíveis.

06/05/2013

sonhei

sonhei
que no escuro mar de dentro
eu-transatlântico naufraguei

sonhei
menino do Colégio Cearense
despertei

Barra do Ceará
travessias - canoas
recordei

desejei,
mais uma vez
ser menino e rei

*

Análise do poema sonhei

O poema sonhei é uma reflexão sobre memória, identidade e desejo de retorno à infância. Estruturado em estrofes curtas e diretas, ele alterna entre sonho e realidade, remetendo ao fluxo da consciência e às travessias simbólicas da vida.


1. O título: sonhei

– O verbo no passado "sonhei" já estabelece o tom onírico e subjetivo do poema.
– O sonho funciona como uma ponte entre o presente e o passado, evocando imagens de naufrágio, infância e desejo de retorno.


2. Primeira estrofe: o naufrágio interior

sonhei
que no escuro mar de dentro
eu-transatlântico naufraguei

– O "mar de dentro" pode ser interpretado como o universo emocional e psíquico do eu lírico, sugerindo profundidade e mistério.
– A metáfora "eu-transatlântico" enfatiza a grandiosidade e a complexidade da identidade, que, no entanto, naufraga.
– O naufrágio pode simbolizar crise, perda ou transição, um colapso interno que leva a uma jornada introspectiva.


3. Segunda estrofe: a memória da infância

sonhei
menino do Colégio Cearense
despertei

– A referência ao Colégio Cearense situa a experiência em um contexto geográfico e histórico específico, ancorando a memória na realidade.
– "Menino do Colégio Cearense" pode indicar uma revisitação da infância escolar, um período formador da identidade.
– O verbo "despertei" marca um contraste com o sonho inicial, trazendo o eu lírico de volta à realidade, mas ainda dentro de um fluxo de recordações.


4. Terceira estrofe: travessias e pertencimento

Barra do Ceará
travessias - canoas
recordei

– A "Barra do Ceará" é um lugar real em Fortaleza, associado à história, à cultura e às travessias.
– A menção a "travessias - canoas" reforça a metáfora do deslocamento, da jornada, tanto literal quanto existencial.
– "Recordei" indica que a travessia não é apenas física, mas também simbólica, uma passagem pela memória e pelo tempo.


5. Última estrofe: o desejo de regresso e poder

desejei,
mais uma vez
ser menino e rei

– "Desejei" sinaliza um movimento ativo, uma vontade de voltar ao estado da infância.
– A expressão "ser menino e rei" sugere um tempo em que a infância era um espaço de liberdade e soberania, um momento em que o eu lírico se sentia pleno e no controle de seu mundo.
– Há uma dualidade: o desejo de regressar à inocência da infância e a ambição de reter poder e autonomia dentro desse estado.


Conclusão: um poema sobre memória, identidade e desejo de retorno

– O poema se organiza em um fluxo de consciência, alternando entre sonho, memória e desejo.
– A metáfora do naufrágio no início marca um momento de crise ou reflexão, levando à busca pelo passado como um porto seguro.
– As referências geográficas (Colégio Cearense, Barra do Ceará) dão concretude à memória, situando a identidade do eu lírico em um contexto específico.
– O fechamento com o desejo de "ser menino e rei" sugere a nostalgia por um tempo em que a vida parecia mais plena e significativa.
– O tom melancólico e reflexivo dá ao poema um caráter intimista e existencial, revelando a complexidade do desejo humano de reencontrar-se com sua própria história.




05/05/2013

Pôneis do Egito

sonho com o Egito
acordo no colo
da odalisca
do Cairo
- tudo isca
para o fado

*



Análise do poema Pôneis do Egito

O poema Pôneis do Egito é um texto curto, mas repleto de referências culturais e simbólicas que misturam sonho e realidade, desejo e destino. A sonoridade e o jogo de palavras criam um efeito lúdico e enigmático, enquanto a menção ao Egito, às odaliscas e ao fado sugere uma fusão entre culturas e atmosferas distintas.


1. O título: Pôneis do Egito

– A menção a "pôneis" junto a "Egito" causa um efeito inesperado.
– "Pôneis" evocam delicadeza, domesticação, algo pequeno e gracioso, enquanto "Egito" remete a uma civilização grandiosa e misteriosa.
– O título pode ser interpretado como um contraste entre o exótico e o banal, o mítico e o cotidiano.
– Também pode sugerir um tom irônico ou surrealista, deslocando expectativas.


2. Primeira linha: o sonho orientalista

sonho com o Egito

– O Egito é um espaço mítico, histórico e exótico, um lugar que na imaginação ocidental muitas vezes se confunde com mistério e desejo.
– A referência ao sonho já coloca o poema no campo do onírico, do desejo e da fantasia.


3. Segunda e terceira linhas: o despertar sensual

acordo no colo
da odalisca

– A imagem do "colo da odalisca" remete ao imaginário orientalista, presente na pintura e na literatura ocidental.
– "Odalisca" era o termo para mulheres dos haréns otomanos, muitas vezes representadas de forma sensual na arte europeia do século XIX.
– Esse verso sugere um despertar envolto em desejo e sedução, criando um clima de exotismo e fantasia.


4. Quarta linha: a localização específica

do Cairo

– "Cairo", capital do Egito, reforça a fusão entre a realidade e a fantasia do sonho.
– O Egito e sua capital são frequentemente associados a uma atmosfera misteriosa e histórica, mas aqui a referência se desloca para um cenário mais íntimo e sensual.


5. Quinta linha: a armadilha do destino

- tudo isca
para o fado

– A palavra "isca" introduz a ideia de armadilha, ilusão, sedução.
– "Fado", além de remeter à música portuguesa marcada pela melancolia e destino inexorável, também significa destino trágico e inevitável.
– A estrutura do verso, com a quebra súbita e o uso de um travessão, enfatiza a revelação final: tudo não passa de um jogo de sedução e predestinação.


Conclusão: um poema sobre desejo, ilusão e destino

– O poema brinca com imagens do orientalismo, explorando o Egito e as odaliscas como símbolos de desejo e mistério.
– A quebra do sonho e a revelação de que tudo é uma "isca para o fado" indicam que há um tom de ironia ou melancolia: o que parecia um sonho de prazer pode ser, na verdade, um caminho já traçado, um destino inescapável.
– A mistura de referências culturais (Egito, odalisca, fado) cria um efeito de deslocamento e hibridismo, como se o eu lírico estivesse em um espaço atemporal entre o sonho e a realidade.
– O título "Pôneis do Egito" continua enigmático, sugerindo que, talvez, o exótico e o misterioso sejam apenas versões domesticadas de uma fantasia ocidental.

O poema, apesar de curto, traz camadas de interpretação que transitam entre o desejo, a ilusão e a inexorabilidade do destino, com um tom que pode ser tanto lúdico quanto fatalista.

Colagem

as flores de plástico morrem
retornam ao petróleo, ademais
os sovacos floridos não mordem
nem nos abandonam, jamais

*

Análise do poema Colagem

O poema Colagem é marcado por um tom irônico e surrealista, utilizando imagens inesperadas para abordar temas como efemeridade, artificialidade e permanência. A justaposição de elementos díspares, como flores de plástico e sovacos floridos, cria um efeito de estranhamento, sugerindo uma reflexão crítica sobre a natureza, a artificialidade e a relação entre o belo e o grotesco.


1. O título: Colagem

– O termo "colagem" sugere uma técnica artística em que diferentes elementos são combinados para formar um novo significado.
– No contexto do poema, essa colagem parece se manifestar na justaposição de imagens contraditórias e na mistura de materiais naturais e artificiais.
– O título também pode remeter à estética do surrealismo e da poesia concreta, onde fragmentos aparentemente desconexos constroem um sentido maior.


2. Primeira linha: a efemeridade do artificial

as flores de plástico morrem

– A frase causa estranhamento, pois o plástico, por sua natureza, é quase indestrutível, enquanto a morte está associada ao perecimento da matéria orgânica.
– A ideia de "flores de plástico" remete ao falso eterno, algo feito para durar mas que, paradoxalmente, também se deteriora.
– Pode ser uma crítica à artificialidade da modernidade, onde até mesmo o que deveria ser eterno tem um fim.


3. Segunda linha: a origem do sintético

retornam ao petróleo, ademais

– O verso reforça a artificialidade do mundo contemporâneo, lembrando que o plástico vem do petróleo, um recurso fóssil.
– Essa "morte" das flores de plástico, na verdade, é um ciclo reverso, pois elas não desaparecem, mas regridem à sua origem, como se a artificialidade fosse uma etapa temporária.
– O uso de "ademais" confere um tom formal e irônico, como se esse fenômeno fosse apenas um detalhe, algo a ser aceito sem alarde.


4. Terceira linha: uma imagem absurda

os sovacos floridos não mordem

– A expressão "sovacos floridos" cria um efeito visual surrealista e cômico.
– Pode sugerir algo inesperadamente belo brotando do ordinário e do grotesco, um contraste entre o corporal (suor, calor, odor) e o poético (flores, perfume, vida).
– "Não mordem" adiciona mais um elemento absurdo, como se os sovacos floridos pudessem ser ameaçadores, mas fossem inofensivos.
– Essa linha pode ser lida como uma crítica ou ironia sobre a ideia de beleza, sugerindo que ela pode surgir de lugares improváveis.


5. Quarta linha: a permanência inusitada

nem nos abandonam, jamais

– Esse verso confere um tom afetivo, quase reconfortante, à imagem dos sovacos floridos.
– Enquanto as flores de plástico morrem e retornam ao petróleo, os sovacos floridos permanecem fiéis, sugerindo uma inversão de expectativas.
– Pode ser uma metáfora para a persistência do corpo e de sua natureza, contrastando com a artificialidade efêmera da modernidade.


Conclusão: um poema sobre artificialidade, permanência e ironia

– O poema mistura elementos artificiais e orgânicos para questionar a natureza da durabilidade e da decadência.
– As flores de plástico, que deveriam durar para sempre, morrem e retornam ao petróleo, enquanto os sovacos floridos, que evocam o inesperado e o grotesco, nunca nos abandonam.
– Há um tom de ironia e surrealismo, característico de uma visão de mundo que brinca com contradições e deslocamentos de sentido.
– A estrutura em versos curtos e diretos reforça o impacto das imagens e dá ao poema um ritmo seco e quase aforístico.

O poema, portanto, é uma colagem de imagens paradoxais, que desafiam nossa percepção da efemeridade e da permanência no mundo contemporâneo.






je
l'ombre
ma mère
la crise
la route
(qui prend
à rien)
et
planant dans l'air
la mer

*

Análise do poema

O poema apresenta uma estrutura minimalista e fragmentada, misturando elementos de identidade, crise, deslocamento e fluidez. A linguagem em francês confere um tom introspectivo e melancólico, enquanto as quebras e os espaços vazios entre os versos sugerem lacunas e deslocamentos de significado.


1. O pronome inicial: je

– A abertura com je (eu) sugere um eu lírico em primeira pessoa, mas a ausência de um verbo logo em seguida já indica uma fragmentação da identidade.
– Esse je parece pairar no vazio, sem um complemento imediato, o que pode indicar desorientação ou suspensão existencial.


2. A sombra da existência

l'ombre

Ombre (sombra) é um termo carregado de simbolismo, podendo remeter à ausência, escuridão, reflexo ou um duplo espectral.
– Aqui, pode indicar que o je não se vê como um ser completo, mas como uma sombra de si mesmo, um eco de algo perdido.


3. A figura materna e a crise

ma mère
la crise

– A introdução da mãe (ma mère) evoca um vínculo primário e fundamental, podendo remeter tanto à origem quanto à dependência emocional.
– A crise (la crise) logo em seguida pode sugerir uma ruptura, um conflito interno ou existencial relacionado a essa figura materna.
– O contraste entre ma mère (mãe, estabilidade) e la crise (ruptura, caos) reforça um desequilíbrio emocional e afetivo.


4. A estrada e o nada

la route
(qui prend à rien)

– A estrada (la route) é um símbolo clássico de caminho, jornada, deslocamento, mas a frase entre parênteses "(qui prend à rien)" (“que leva a nada”) desfaz qualquer ilusão de direção ou progresso.
– Isso sugere um deslocamento sem propósito, uma viagem sem destino, reforçando um sentimento de vazio ou absurdo.
– A estrutura entre parênteses dá a sensação de um pensamento secundário ou marginal, como se fosse algo sussurrado ou inevitável.


5. O elemento final: o mar no ar

et
planant dans l'air
la mer

– O poema encerra com um movimento ascendente e fluido: planant dans l'air (“planando no ar”).
– Esse verso sugere leveza, desprendimento ou até desorientação, como se o eu lírico estivesse suspenso entre o concreto e o abstrato.
– A última palavra, la mer (o mar), reforça a ideia de imensidão, fluxo, deslocamento constante, criando um contraponto à estrada que “leva a nada”.
– Há um jogo fonético entre l'air e la mer, o que pode indicar um deslizamento entre céu e mar, ar e água, sugerindo uma fusão com o infinito ou uma perda total de fronteiras.


Conclusão: um poema sobre identidade, crise e dissolução

– O poema apresenta uma narrativa fragmentada, na qual o eu lírico se vê como uma sombra, em meio a uma crise que envolve sua mãe e sua própria existência.
– A estrada que leva a nada reforça um sentimento de deslocamento e vazio.
– No final, o eu lírico parece se dissolver no ar e no mar, como se estivesse à beira do esquecimento ou de uma transcendência.
– A estrutura minimalista e a ausência de pontuação aumentam a sensação de fluxo contínuo e indefinição.

É um poema introspectivo, melancólico e existencialista, que sugere uma busca por sentido em meio à incerteza e à dissolução do eu.




30/04/2013

Em se tratando de religião, a interrogação é mais profícua do que a convicção.

Lacan no Seminário 7 - A Ética da Psicanálise -, sublinha que os  elementos da tradição judaico-cristã são constitutivos da ordem simbólica que organiza a lógica da subjetividade moderna, a partir da função exercida pela instância paterna. O que é um Pai? É a  grande questão freudiana.
Lacan demonstra no referido Seminário, como o Pai da religião judaico-cristã sucede os Deuses pagãos do mundo grego, modificando a ordem simbólica na cultura, instalando o mistério, ou seja, a possibilidade de criação do porvir e produzindo a consequente responsabilidade pelo não-sabido. Nesse sentido, o religare estabelece-se, então, em torno do interrogare. Assim,  a Psicanálise é uma construção herdeira dos operadores simbólicos dessa tradição, o que a aproxima da religião. Contudo, a clínica e a elaboração teórica freud-lacaniana apontam para uma diferença entre religião e psicanálise através de uma mudança de foco nessa interrogação, passando da busca do conhecimento do Pai, para a interrogação sobre a função operatória do Pai. Enfim, se a religião dirige suas questões “Para o pai”, a psicanálise dirige-as “Para aquém e além do Pai”, para a sua eficácia simbólica.

*

Análise do texto

O texto apresenta uma reflexão psicanalítica sobre a relação entre religião e psicanálise, utilizando conceitos de Freud e Lacan para destacar as diferenças entre ambas. A ideia central é que, enquanto a religião busca respostas e certezas na figura do Pai, a psicanálise desloca essa questão para um campo mais amplo, investigando sua função simbólica e seus efeitos na subjetividade. A interrogação, portanto, surge como um elemento essencial da psicanálise, contrastando com a convicção religiosa.


1. O Título: a interrogação como mais profícua do que a convicção

– O título já antecipa a tese do texto: a dúvida, a interrogação, é mais produtiva do que a certeza na abordagem da religião.
– A palavra "profícua" sugere que a incerteza gera mais efeitos de pensamento e transformação do que a adesão inquestionável às crenças.
– Esse princípio é alinhado com a lógica da psicanálise, que se baseia na investigação do inconsciente e na abertura ao não-sabido, em vez de oferecer respostas definitivas.


2. Lacan e a influência da tradição judaico-cristã

"Lacan no Seminário 7 - A Ética da Psicanálise -, sublinha que os elementos da tradição judaico-cristã são constitutivos da ordem simbólica que organiza a lógica da subjetividade moderna, a partir da função exercida pela instância paterna."

– Aqui, o texto aponta para um conceito fundamental da psicanálise lacaniana: a estrutura simbólica da subjetividade.
– A tradição judaico-cristã tem um papel central na organização do simbólico, especialmente no que diz respeito ao Pai, que exerce uma função estruturante no psiquismo.
– A instância paterna é o que permite a separação entre o sujeito e o desejo materno, introduzindo a Lei e possibilitando a construção da subjetividade.


3. A grande questão freudiana: O que é um Pai?

"O que é um Pai? É a grande questão freudiana."

– Esse trecho remete diretamente à problemática central do Nome-do-Pai em Lacan e ao papel do pai na teoria freudiana.
– Freud concebe o Pai como um elemento fundamental na constituição da subjetividade, seja na forma do Pai da horda primitiva (Totem e Tabu), seja como aquele que introduz a Lei e o desejo no sujeito.
– A pergunta "O que é um Pai?" desloca o foco da figura concreta do pai para sua função simbólica, um ponto essencial para compreender a diferença entre religião e psicanálise.


4. A transição dos Deuses pagãos para o Pai monoteísta

"Lacan demonstra no referido Seminário, como o Pai da religião judaico-cristã sucede os Deuses pagãos do mundo grego, modificando a ordem simbólica na cultura, instalando o mistério, ou seja, a possibilidade de criação do porvir e produzindo a consequente responsabilidade pelo não-sabido."

– Antes do Deus monoteísta, a cultura ocidental estava estruturada pelos deuses pagãos, que possuíam características mais fragmentadas e antropomórficas.
– O Pai monoteísta representa uma unificação do poder divino, promovendo uma nova ordem simbólica.
– Esse Deus não se apresenta plenamente, mas se oculta no mistério, o que Lacan chama de "responsabilidade pelo não-sabido".
– Isso significa que, ao invés de oferecer respostas definitivas, a figura do Pai monoteísta cria um espaço para a interrogação e a construção do futuro.


5. A relação entre religare e interrogare

"Nesse sentido, o religare estabelece-se, então, em torno do interrogare."

– O termo religare (de onde vem "religião") significa reconexão, união com o sagrado.
– A inovação do texto está em sugerir que essa reconexão ocorre através da interrogação, e não pela convicção cega.
– Isso indica que a religião, assim como a psicanálise, lida com o mistério e o desconhecido, mas de modos distintos.


6. A diferença entre religião e psicanálise

"Contudo, a clínica e a elaboração teórica freud-lacaniana apontam para uma diferença entre religião e psicanálise através de uma mudança de foco nessa interrogação, passando da busca do conhecimento do Pai, para a interrogação sobre a função operatória do Pai."

– A grande distinção entre religião e psicanálise não está no fato de ambas lidarem com a interrogação, mas na forma como a interrogação é conduzida.
– A religião busca compreender o Pai como figura transcendental, como fonte de sentido e direção.
– Já a psicanálise não se interessa pelo Pai enquanto entidade, mas sim pela sua função simbólica e operatória, ou seja, como essa figura estrutura o sujeito e a cultura.
– A psicanálise desloca a questão do "quem" para o "como": não é o Pai como ser supremo que importa, mas sim o que essa função faz na psique e na sociedade.


7. O deslocamento da questão: do Pai ao além do Pai

"Enfim, se a religião dirige suas questões 'Para o Pai', a psicanálise dirige-as 'Para aquém e além do Pai', para a sua eficácia simbólica."

– Esse trecho sintetiza a diferença entre as duas abordagens:

  • A religião olha para o Pai, como um guia, um sentido transcendental.
  • A psicanálise olha para aquém e além do Pai, questionando seu funcionamento e seus efeitos.
    – Esse deslocamento faz com que a psicanálise não seja uma substituição da religião, mas uma prática que herda suas questões, reorganizando-as em um campo simbólico e subjetivo.

Conclusão: a psicanálise como interrogação sem resposta final

– O texto demonstra que a psicanálise não nega a influência da religião, mas a reinsere como um fenômeno simbólico e estruturante da subjetividade.
– A interrogação é o motor da psicanálise, enquanto a convicção é um elemento mais característico da religião.
– Freud e Lacan deslocam o foco do Pai como entidade para o Pai como operador simbólico, permitindo uma abordagem mais fluida e crítica.
– O pensamento psicanalítico, portanto, não se funda na certeza do Pai, mas na interrogação sobre sua função, o que o torna uma prática de abertura ao desconhecido, sem a necessidade de respostas absolutas.

Dessa forma, o texto reforça a ideia de que, quando se trata de religião (e da psicanálise), a interrogação sempre produz mais do que a convicção.




Despertador

relógio, clock
o mundo lança
seus primeiros acordes
está na hora de sonhar

*

Análise do poema Despertador

O poema Despertador apresenta um jogo entre tempo, som e sonho, invertendo a lógica habitual do despertar. Em vez de um despertador que chama à realidade, ele sugere que a hora de acordar é também a hora de sonhar. O poema, curto e sugestivo, brinca com as contradições entre vigília e sonho, tempo e imaginação.


1. O título: Despertador

– O título remete a um objeto funcional cujo propósito é chamar alguém à consciência, ao estado de alerta.
– No entanto, o poema propõe uma subversão desse papel: o despertar não leva à realidade, mas ao sonho.
– Essa inversão já antecipa um jogo de sentidos que permeia todo o texto.


2. Primeira linha: um tempo duplo

relógio, clock

– O uso bilíngue (relógio, clock) sugere uma ênfase no tempo enquanto construção simbólica e universal.
– O relógio, em qualquer idioma, é um instrumento de medição do tempo e está associado à rotina, à disciplina e ao mundo concreto.
– Essa nomeação dupla pode evocar a simultaneidade do tempo, a coexistência de diferentes formas de medi-lo ou vivê-lo.


3. Segunda linha: o mundo em movimento

o mundo lança

– O verbo "lança" sugere um movimento abrupto, um início enérgico.
– O mundo é apresentado como um agente ativo, algo que desperta e toma iniciativa.
– Isso reforça a ideia de que o tempo não é apenas uma medida estática, mas algo que impulsiona a experiência e o pensamento.


4. Terceira linha: o tempo como música

seus primeiros acordes

– A metáfora musical transforma o tempo em som, melodia, ritmo, sugerindo que o amanhecer (ou o início do dia) é uma composição que se inicia.
– A escolha do termo "acordes" conecta-se ao próprio significado de "acordar", criando um jogo sonoro e semântico.
– O tempo, então, não apenas marca o começo do dia, mas o inaugura como um evento estético, uma sinfonia em andamento.


5. Última linha: a inversão do despertar

está na hora de sonhar

– Aqui, o poema rompe com a expectativa de que acordar significa abandonar os sonhos.
– O despertar, ao invés de remeter ao pragmatismo, indica o início do sonho, sugerindo que a vigília pode ser tão imaginativa quanto o sono.
– Essa inversão traz um tom poético e até filosófico, desafiando a noção de que sonho e realidade são opostos.


Conclusão: um poema sobre o tempo como criação e sonho

– O poema subverte a ideia tradicional do despertador como um chamado para a realidade pragmática.
– O tempo não é apenas uma medida rígida, mas uma música, um fluxo dinâmico que impulsiona o imaginário.
– O último verso inverte a lógica da rotina, sugerindo que a vida desperta deve ser vivida como um sonho, cheia de possibilidades.
– O uso de poucos versos e palavras simples reforça a força simbólica do poema, deixando espaço para múltiplas interpretações.

Assim, Despertador nos convida a pensar no tempo não como uma prisão, mas como um convite à imaginação, à criação e ao sonho.




A casa própria

casa própria
alma imprópria
para maiores
menores
probidade

opróbrio
da viúva

ovo e uva
boa

houve
uma viúva
boa

saúva
saúda
a doutora

a verdade
única
com ou sem
túnica

foice

isso é apenas
um jogo de palavras

pás
larvas
enterram

a casa própria
a alma imprópria
sossega

*

Análise do poema A casa própria

O poema A casa própria trabalha com jogos sonoros, deslocamentos semânticos e repetições, criando um fluxo de significados que se alternam entre o concreto e o abstrato. A justaposição de palavras semelhantes, mas de sentidos distintos, gera uma atmosfera de instabilidade, como se a própria linguagem fosse um terreno em constante transformação.

O eixo central do poema parece ser a contraposição entre "casa própria" e "alma imprópria", sugerindo um jogo entre segurança material e inquietação existencial.


1. O título: A casa própria

– "Casa própria" remete ao desejo de estabilidade e posse, uma conquista valorizada socialmente.
– No entanto, ao longo do poema, essa segurança material é posta em contraste com uma alma que não se encaixa nas convenções.
– A relação entre propriedade e identidade já se insinua como uma tensão central no poema.


2. Primeira estrofe: a inadequação da alma

casa própria
alma imprópria
para maiores
menores
probidade

– O contraste entre "casa própria" (estável, concreta) e "alma imprópria" (instável, inadequada) marca uma contradição fundamental entre pertencimento material e deslocamento subjetivo.
– A enumeração "maiores / menores / probidade" sugere um deslocamento de significado:

  • "Maiores" e "menores" podem remeter a idades, hierarquias ou julgamentos morais.
  • "Probidade" (honestidade, retidão) se conecta à noção de adequação ética e social, algo que a "alma imprópria" parece questionar.

3. Segunda estrofe: o opróbrio da viúva

opróbrio
da viúva

– "Opróbrio" significa vergonha, desonra, sugerindo um peso social sobre a figura da viúva.
– A viúva é um arquétipo culturalmente carregado de luto e exclusão, indicando um possível eco de dor e marginalidade no poema.


4. Terceira estrofe: jogo fonético e memória

ovo e uva
boa
houve
uma viúva
boa

– Aqui, o poema se move para um jogo fonético, onde as palavras ecoam sonoramente (ovo, uva, houve, viúva).
– "Houve uma viúva boa" parece uma tentativa de resgatar ou afirmar algo positivo, mas o tom seco e enigmático da construção mantém a ambiguidade.


5. Quarta estrofe: um deslocamento inesperado

saúva
saúda
a doutora

– "Saúva" (formiga conhecida por sua força destrutiva) introduz um novo campo semântico, ligado ao trabalho incessante e ao consumo da terra.
– "Saúda" transforma o nome do inseto em verbo, criando um jogo entre o que devora e o que cumprimenta.
– "A doutora" pode ser qualquer figura de autoridade ou conhecimento, tornando a cena ainda mais aberta a interpretações.


6. Quinta estrofe: a verdade e o véu da religião

a verdade
única
com ou sem
túnica

– "A verdade única" sugere um tom absoluto, talvez irônico.
– "Com ou sem túnica" insinua que a verdade pode se apresentar religiosa ou secular, mas ainda assim continua sendo uma construção.


7. Sexta estrofe: o símbolo da morte

foice

– A palavra isolada "foice" carrega um peso forte:

  • Pode representar morte, remetendo à figura da ceifadora.
  • Pode remeter ao trabalho agrícola, reforçando a presença da saúva e a ideia de consumo e destruição.
  • Também pode evocar símbolos políticos, como o comunismo, que questiona a propriedade privada (tema do título).

8. Sétima estrofe: negação da linguagem e enterro

isso é apenas
um jogo de palavras

– Essa linha sugere autoconsciência poética, indicando que o poema brinca com a linguagem e com os sentidos.
– No entanto, ao longo do texto, percebemos que esse "jogo" tem implicações profundas sobre propriedade, identidade e finitude.


9. O encerramento: morte e sossego

pás
larvas
enterram
a casa própria
a alma imprópria
sossega

– "Pás" e "larvas" remetem ao ato de enterrar, encerrando o ciclo da matéria.
– A casa e a alma, antes opostas, agora são postas lado a lado como algo que deixa de existir.
– O verbo "sossega" traz um tom de fim, descanso, resolução, sugerindo que no fim tudo se iguala.


Conclusão: um poema sobre propriedade, identidade e morte

– O poema questiona a dicotomia entre material e subjetivo, sugerindo que a propriedade (casa própria) não garante pertencimento, e que a identidade (alma imprópria) pode ser sempre deslocada.
– O jogo de palavras cria repetições sonoras e associações inesperadas, intensificando a instabilidade dos significados.
– A figura da viúva, da formiga saúva e da foice reforça um campo simbólico de perda, trabalho incessante e finitude.
– No final, tudo é enterrado, e o "sossega" sugere que, no fim, a casa e a alma encontram o mesmo destino.

O poema, portanto, é uma meditação sobre posse, identidade e a inevitabilidade do fim, utilizando a linguagem como um campo de deslocamentos e contradições.




Ciliar

minha casa é simples
móveis simples
utensílios simples

minha alma é simples
móvel simples
cílio simples

ciliar

*

Análise do poema Ciliar

O poema Ciliar explora a relação entre simplicidade, movimento e fragilidade, jogando com a materialidade da casa e a leveza da alma. A palavra "ciliar", que dá título ao poema, remete tanto aos cílios (pequenos e delicados fios que protegem os olhos) quanto à ideia de limite, borda, contorno, sugerindo algo que está na fronteira entre o essencial e o etéreo.


1. O título: Ciliar

– A palavra "ciliar" pode ser associada a:

  • Cílios, pequenos pelos que protegem os olhos e piscam involuntariamente.
  • Margens, limites, referindo-se à borda do campo de visão ou ao limiar entre materialidade e imaterialidade.
  • A ideia de delicadeza e transitoriedade, pois cílios são frágeis, quase imperceptíveis, mas cumprem uma função protetora.
    – O título já antecipa a proposta do poema: uma reflexão sobre o que é essencial e leve, mas ainda assim fundamental.

2. Primeira estrofe: a casa e sua materialidade

minha casa é simples
móveis simples
utensílios simples

– A simplicidade da casa se reflete nos móveis e nos objetos, sugerindo um ambiente despojado, sem excessos.
– A repetição do termo "simples" reforça a austeridade e essencialidade, como se cada coisa tivesse apenas a função necessária, sem ornamentos supérfluos.
– A casa, neste contexto, é um espaço de funcionalidade e desapego, sem luxo ou ostentação.


3. Segunda estrofe: a alma como um espaço móvel

minha alma é simples
móvel simples
cílio simples

– O deslocamento da casa para a alma sugere uma continuidade entre o externo (material) e o interno (subjetivo).
– A alma, assim como os móveis da casa, é descrita como simples e móvel, indicando leveza, fluidez, capacidade de mudança.
– A transição do "móvel" para o "cílio" marca um movimento do macro para o micro, do espaço físico para a mínima unidade de proteção do corpo.
– O "cílio" pode representar a sensibilidade, o contato com o exterior, a proteção discreta, sugerindo que a alma, apesar de simples, é delicada e atenta.


4. O último verso: síntese e transcendência

ciliar

– O poema se encerra com uma palavra isolada, que sintetiza os elementos anteriores e amplia o campo de interpretação.
– "Ciliar" aqui pode ser lido como:

  • Um estado de leveza e proteção, como os cílios protegem os olhos do excesso de luz ou poeira.
  • Uma metáfora para a borda do existir, algo que está na margem, na fronteira entre o visível e o invisível.
  • A ideia de simplicidade como um limite tênue entre o essencial e o etéreo, entre o corpo e o mundo.
    – O fechamento com essa palavra única deixa um sentimento de suspensão e abertura, como se o poema permanecesse ecoando no leitor.

Conclusão: um poema sobre leveza, desapego e essência

– O poema constrói uma relação entre casa e alma, materialidade e subjetividade, sugerindo que a simplicidade externa reflete uma leveza interna.
– O jogo com os termos "móvel" e "cílio" enfatiza a mobilidade e a delicadeza, como se a alma estivesse em constante contato com o mundo, mas de maneira sutil.
– O título e o último verso expandem o sentido do poema, evocando a ideia de limite, fronteira e proteção invisível.
– O tom minimalista e a repetição de "simples" reforçam a busca por uma essência despojada, mas vital.

Assim, Ciliar é um poema que convida à reflexão sobre a leveza da existência e a importância do essencial, mostrando que, no fim, o que protege e sustenta pode ser tão sutil quanto um cílio.




Alucinógeno

comestível
venenoso
parasita

âncora
ventilador

micro
macro
ótico
enganador

é o cogumelo
doutor

*

Análise do poema Alucinógeno

O poema Alucinógeno trabalha com a dualidade e a ambiguidade do cogumelo, uma figura que pode ser tanto alimento quanto veneno, tanto real quanto alucinatória. A estrutura fragmentada e a justaposição de palavras contrastantes criam uma atmosfera de incerteza, sugerindo que o cogumelo transcende categorias fixas e desafia percepções.


1. O título: Alucinógeno

– A palavra "alucinógeno" remete a substâncias que alteram a percepção da realidade, evocando um estado de confusão ou revelação.
– Desde o título, já se estabelece um jogo entre realidade e ilusão, percepção e engano.
– O poema não menciona diretamente os efeitos alucinógenos do cogumelo, mas constrói uma atmosfera de estranheza e incerteza que reforça essa ideia.


2. Primeira estrofe: o cogumelo e suas naturezas ambíguas

comestível
venenoso
parasita

– O cogumelo pode ser nutritivo e mortal ao mesmo tempo, dependendo da espécie.
– Essa ambiguidade já sugere desejo e perigo, algo que atrai mas pode destruir.
– "Parasita" reforça a imagem do fungo como um organismo que se nutre de outros, expandindo o campo semântico para além do consumo humano e incluindo sua função ecológica.


3. Segunda estrofe: imagens inesperadas

âncora
ventilador

– Aqui, a estrutura do poema se torna mais enigmática, trazendo elementos que parecem desconectados.
– "Âncora" sugere algo pesado, fixo, que prende ao solo.
– "Ventilador", ao contrário, evoca movimento, dispersão, leveza.
– Essa oposição pode remeter à dualidade da experiência alucinógena, que pode tanto prender quanto libertar, fixar ou fazer girar a percepção.


4. Terceira estrofe: escalas de percepção e engano

micro
macro
ótico
enganador

– A sequência joga com escalas de percepção:

  • "Micro" e "macro" remetem ao infinitamente pequeno e ao imenso, sugerindo que o cogumelo pode pertencer a ambos os mundos.
  • "Ótico" traz a ideia da visão, da percepção sensorial, alinhando-se ao efeito alucinógeno.
  • "Enganador" reforça a natureza ilusória do que se vê, indicando que o cogumelo não é o que parece ser.

5. O desfecho: a identificação inesperada

é o cogumelo
doutor

– A conclusão surpreende ao dar ao cogumelo um tom de autoridade ou conhecimento, chamando-o de "doutor".
– Esse verso final pode ser interpretado de diversas formas:

  • O cogumelo como revelador de verdades, como em culturas xamânicas que usam substâncias alucinógenas para experiências místicas.
  • Ironia, ao atribuir conhecimento a algo que também é visto como venenoso e enganador.
  • Personificação, tornando o cogumelo um ser dotado de inteligência ou poder.

Conclusão: um poema sobre percepção, ilusão e conhecimento

– O poema constrói o cogumelo como um ser ambíguo, capaz de alimentar e envenenar, prender e libertar, expandir e confundir a percepção.
– O uso de palavras soltas e contrastantes gera um efeito fragmentado e alucinatório, remetendo à experiência alterada que o título sugere.
– O desfecho com "doutor" amplia as interpretações, abrindo espaço para o cogumelo como símbolo de conhecimento, engano ou transcendência.

Assim, Alucinógeno não apenas descreve o cogumelo, mas cria uma experiência poética que reflete sua própria essência: enigmática, fascinante e cheia de significados ocultos.




Persistência

recolhimento
esquecimento
cimento
e um cogumelo
entre as frestas
do pensamento

*

Análise do poema Persistência

O poema Persistência explora a ideia de tempo, esquecimento e renascimento, utilizando o cogumelo como um símbolo de resistência e surgimento inesperado. A estrutura curta e o jogo sonoro entre palavras reforçam a sensação de algo que perdura apesar das adversidades, emergindo no meio do esquecimento e do concreto.


1. O título: Persistência

– O título já antecipa a ideia central do poema: algo que resiste, que se mantém apesar das circunstâncias.
– A persistência pode ser tanto mental (memórias, pensamentos que voltam) quanto física (vida brotando em lugares inóspitos).


2. Primeira estrofe: camadas de tempo e esquecimento

recolhimento
esquecimento
cimento

– A sequência de palavras cria uma progressão que sugere isolamento, perda e endurecimento:

  • "Recolhimento" evoca introspecção, retirada, um estado de pausa ou silêncio.
  • "Esquecimento" sugere desaparecimento, erosão da memória.
  • "Cimento" traz a ideia de algo rígido, definitivo, uma tentativa de enterrar ou sufocar.

– Esse trecho pode ser interpretado tanto como um processo interno (memórias que tentam ser esquecidas) quanto externo (o concreto cobrindo a terra, a civilização apagando a natureza).


3. Segunda estrofe: a emergência inesperada

e um cogumelo
entre as frestas
do pensamento

– A imagem do cogumelo brotando entre as frestas quebra a rigidez do cimento.
– O cogumelo aqui simboliza o que resiste, o que retorna apesar do esquecimento e da dureza do tempo.
– Ele surge nas frestas do pensamento, sugerindo que mesmo o que tentamos apagar pode reaparecer de forma inesperada.
– Pode ser uma metáfora para ideias reprimidas, lembranças esquecidas ou sentimentos soterrados que, como um cogumelo, emergem nos espaços onde menos esperamos.


Conclusão: um poema sobre resistência e resiliência

– O poema constrói um contraste entre o esquecimento e a persistência, mostrando como algo pode reaparecer mesmo quando parece enterrado.
– O cogumelo é um símbolo de resistência, pois cresce em condições adversas, nascendo do esquecido e do inóspito.
– A imagem final sugere que o pensamento nunca é completamente apagado: sempre há frestas por onde ele pode ressurgir.
– O tom minimalista e a musicalidade dos versos reforçam a sensação de um ciclo natural, onde o que é soterrado pode um dia voltar à superfície.

Assim, Persistência é um poema sobre memória, tempo e a inevitabilidade do retorno, mostrando que, mesmo sob o cimento do esquecimento, sempre há algo que insiste em existir.




28/04/2013

Visto e reparado

vejo e sou visto
existo?
ou simplesmente insisto?

*

Análise do poema Visto e reparado

O poema Visto e reparado trabalha com a relação entre visão, existência e persistência, explorando um questionamento essencial sobre a identidade e a percepção. A construção minimalista e interrogativa cria um efeito reflexivo, colocando o leitor diante de uma dúvida filosófica: existo porque sou visto ou apenas porque insisto?


1. O título: Visto e reparado

– O título sugere dois significados:

  • "Visto" como ser percebido, ser olhado pelos outros.
  • "Reparado" pode significar tanto notado (alguém que chama atenção) quanto consertado (algo que foi corrigido, ajustado).
    – Esse jogo de significados já antecipa a questão do poema: a existência está vinculada ao olhar do outro?

2. Primeiro verso: a relação entre ver e ser visto

vejo e sou visto

– O verso sugere uma troca mútua, onde o sujeito da fala tanto percebe o mundo quanto é percebido por ele.
– Há um eco da teoria fenomenológica da percepção: nossa existência se dá na interação com os outros.
– Também pode remeter à psicanálise, especialmente à ideia de ser reconhecido pelo olhar do outro como um sujeito.


3. Segundo verso: a dúvida sobre a existência

existo?

– A interrogação introduz uma ruptura, um questionamento sobre a própria condição do ser.
– Se "vejo e sou visto", então deveria haver uma confirmação da existência, mas a dúvida persiste.
– O verso curto e isolado reforça o impacto da questão, tornando-a central no poema.


4. Terceiro verso: a insistência como forma de existência

ou simplesmente insisto?

– Aqui, o poema desloca a questão do ser para a ação contínua.
– "Insistir" pode sugerir:

  • Um ato de resistência, um desejo de se afirmar mesmo sem garantias.
  • A ideia de que a existência não é dada, mas construída no esforço diário.
  • Um eco do pensamento existencialista, onde a identidade não é fixa, mas um processo contínuo de afirmação.

Conclusão: um poema sobre percepção, identidade e persistência

– O poema coloca o sujeito diante da incerteza sobre a própria existência, questionando se ser visto é suficiente para existir.
– A relação entre ver e ser visto sugere que a identidade é construída na interação com os outros.
– O uso da interrogação e do verbo "insistir" remete à angústia existencial: a existência pode ser uma questão de percepção ou apenas de resistência?
– A economia de palavras e a estrutura simples intensificam o impacto filosófico do poema, deixando a dúvida aberta para o leitor.

Assim, Visto e reparado reflete sobre a fragilidade da existência e o papel do olhar do outro na construção da identidade, levantando uma questão essencial: existo porque sou percebido ou porque persisto?




24/11/2011

Por encquanto


Meretriz. Medicatriz
‑ incantare... incantatore... Encanteria!
: Meretriz Mediatriz...

Por encanto... Puro encanto... Por enquanto!

*
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Análise:

O poema "Meretriz. Medicatriz" explora o jogo entre palavras, sons e significados, criando uma atmosfera encantatória e misteriosa. Ele transita entre a sensualidade, a cura, o encantamento e a temporalidade, sugerindo uma reflexão sobre o poder da linguagem e sua capacidade de transformar percepções e realidades.


Análise por Versos:

  1. "Meretriz. Medicatriz"

    • Dualidade e contraste: O poema começa com a justaposição de "Meretriz" (associada à sensualidade, à prostituição e, simbolicamente, à transgressão) e "Medicatriz" (associada à cura e ao cuidado). Essa combinação cria um contraste entre o profano e o sagrado, entre o corpo e a alma.
    • Ambivalência feminina: As palavras podem ser lidas como representações simbólicas da mulher, vista tanto como fonte de prazer quanto como agente de cura.
  2. "‑ incantare... incantatore... Encanteria!"

    • Efeito de encantamento: O uso de palavras de origem latina e seu desdobramento até "Encanteria" cria um ritmo mágico e musical. "Incantare" (encantar) e "incantatore" (aquele que encanta) remetem ao poder da magia e da sedução.
    • Ritualização da linguagem: A repetição e variação das palavras sugerem um feitiço ou encantamento, reforçando o tom místico e poético do texto.
  3. ": Meretriz Mediatriz..."

    • Fusão de papéis: A repetição das palavras "Meretriz" e "Medicatriz" (agora transformada em "Mediatriz") reforça a ideia de que esses papéis não são opostos, mas coexistem e se fundem. "Mediatriz" pode ser lida como uma mediadora ou intermediária entre mundos ou estados opostos.
    • Ritmo cíclico: O uso do dois-pontos cria uma pausa reflexiva, quase como se o poema estivesse retomando ou ampliando os significados das palavras.
  4. "Por encanto... Puro encanto... Por enquanto!"

    • Temporalidade e transitoriedade: O uso repetido de "encanto" sugere uma força temporária, mas poderosa, que transforma o momento presente. A expressão "Por enquanto" fecha o poema com uma nota de efemeridade, destacando que o encanto, embora real, é transitório.
    • Ênfase na magia do presente: A repetição de "encanto" como ideia central do verso finaliza o poema em tom mágico, sugerindo que o momento, mesmo breve, carrega significados profundos e transformadores.

Temas Centrais:

  1. Dualidade e Ambiguidade:

    • O poema explora oposições simbólicas (como meretriz/medicatriz, profano/sagrado, corpo/espírito) e mostra que essas dualidades podem coexistir, refletindo a complexidade da existência.
  2. Encantamento e Magia:

    • A linguagem do poema evoca o poder do encanto, tanto como sedução quanto como transformação mágica ou espiritual.
  3. Temporalidade e Efemeridade:

    • A ideia de que o "encanto" é transitório ("por enquanto") reforça a noção de que a beleza e a magia da vida estão no momento presente, mas são passageiras.
  4. O Poder da Linguagem:

    • A repetição, as variações linguísticas e a musicalidade sugerem que as palavras têm um poder próprio, funcionando como um encantamento capaz de moldar sentidos e criar experiências.

Estilo e Linguagem:

  1. Jogos Fonéticos e Sonoros:

    • O poema utiliza palavras que ressoam entre si ("Meretriz", "Medicatriz", "Mediatriz"), criando um ritmo encantatório que reforça o tema do feitiço.
  2. Influências Latinas e Arcaicas:

    • O uso de termos como "incantare" e "incantatore" remete a uma linguagem antiga, conferindo ao poema um tom ritualístico e misterioso.
  3. Estrutura Circular:

    • A repetição de palavras e ideias cria uma sensação de retorno, como se o poema fosse uma invocação cíclica ou um feitiço recitado.
  4. Ritmo Musical:

    • A pontuação e a repetição ("Por encanto... Puro encanto... Por enquanto!") criam um ritmo que aproxima o poema de uma melodia, reforçando seu tom mágico.

Considerações Finais:

"Meretriz. Medicatriz" é um poema que celebra a dualidade e a magia da existência, utilizando a linguagem como veículo de encantamento e reflexão. Ele explora o contraste e a fusão de opostos, sugerindo que o encanto está tanto na efemeridade quanto na permanência simbólica das palavras. Com um estilo místico e musical, o poema convida o leitor a refletir sobre os papéis simbólicos da mulher, o poder da linguagem e a beleza do momento presente, mesmo que fugaz. É uma obra que dança entre o sagrado e o profano, o místico e o real, o eterno e o transitório.

19/11/2011

Hefesto & Vulcano

Nem tudo que se foi
Foi-se

Hefesto com martelo
Na bigorna molda
Em ferro temperado
Histórias ‑ fracas, notórias
No calor abrasado
Das memórias
Ferreiro divino
Constrói armas, ferramentas, objetos finos

Vulcano subterrâneo
Como ácido subcutâneo,
Eruptivo,
a tudo abraça
Em vingativas brasas
(Nem a mãe escapa...)

***

Análise do poema: "Hefesto & Vulcano"

O poema "Hefesto & Vulcano" combina mitologia, memória e metáforas poderosas para explorar temas como criação, destruição, memória e ressentimento. As figuras de Hefesto e Vulcano, deuses associados ao fogo e à forja, são usadas como símbolos de processos interiores e exteriores: a construção cuidadosa e a explosão incontrolável. A dualidade entre criação e destruição permeia o texto, revelando camadas de significados que dialogam com a psique humana.


Título: Hefesto & Vulcano

  • Dualidade Mitológica: O título une duas representações do mesmo arquétipo em diferentes mitologias – Hefesto (grega) e Vulcano (romana). Ambos são deuses do fogo e da metalurgia, mas enquanto Hefesto simboliza o artífice criador, Vulcano incorpora o aspecto destrutivo e eruptivo do fogo.
  • Paralelo Psicológico: O título já sugere uma tensão entre construção e destruição, habilidade e fúria, paciência e explosividade, que se desdobrará no poema.

Análise por Estrofes:

  1. "Nem tudo que se foi / Foi-se"

    • Persistência da memória: O verso inicial apresenta um paradoxo: embora algo pareça ter ido embora, permanece de alguma forma, especialmente no plano emocional ou simbólico.
    • Introdução ao tema central: Esse início conecta-se à função dos deuses do fogo como transformadores – o que é destruído (ou aparentemente perdido) pode ser moldado em algo novo.
  2. "Hefesto com martelo / Na bigorna molda"

    • O artífice divino: Hefesto é apresentado como o deus da criação, cujo trabalho paciente transforma matéria bruta em algo útil ou belo. Ele simboliza o esforço e a habilidade necessários para dar forma às experiências e às memórias.
    • A metáfora do trabalho humano: O martelo e a bigorna representam o esforço criativo, seja literal (como o trabalho físico) ou metafórico (como a elaboração das emoções e lembranças).
  3. "Histórias ‑ fracas, notórias / No calor abrasado / Das memórias"

    • Forja da memória: As histórias, frágeis ou marcantes, são moldadas no calor das experiências passadas. O "calor abrasado" sugere que memórias são intensas e emotivas, gerando marcas profundas.
    • Ambiguidade das memórias: As palavras "fracas" e "notórias" sugerem que nem toda memória é grandiosa; algumas são efêmeras, mas ainda assim contribuem para o todo.
  4. "Ferreiro divino / Constrói armas, ferramentas, objetos finos"

    • Criação multifacetada: Hefesto é tanto um criador de armas (destrutivas) quanto de ferramentas e objetos finos (construtivos). Essa dualidade reflete o poder de transformar algo bruto em algo tanto funcional quanto estético.
    • Conexão com o humano: A imagem do ferreiro divino é uma metáfora para a habilidade humana de transformar experiências, incluindo sofrimento, em algo significativo.
  5. "Vulcano subterrâneo / Como ácido subcutâneo"

    • Fogo interno: Vulcano, em contraste com Hefesto, é apresentado como uma força eruptiva e subterrânea. Ele representa emoções intensas e reprimidas que podem emergir de forma destrutiva.
    • Comparação visceral: O "ácido subcutâneo" sugere dor e corrosão internas, que permanecem latentes até o momento de explosão.
  6. "Eruptivo, / a tudo abraça / Em vingativas brasas"

    • Força destrutiva: Vulcano simboliza a fúria que consome tudo ao seu redor. Sua energia é abrasadora e vingativa, carregada de ressentimento e incontrolável.
    • Vingança como tema: A ideia de "brasas vingativas" sugere que essa destruição não é aleatória, mas dirigida por uma dor ou rancor profundo.
  7. "(Nem a mãe escapa...)"

    • Traição e dor: Esse verso final alude à complexidade das relações humanas e ao impacto de emoções intensas, como a vingança, que pode atingir até mesmo figuras normalmente associadas ao cuidado e à proteção.
    • Eco mitológico: Essa linha remete à mitologia de Vulcano, que em algumas versões é rejeitado por sua mãe (Hera ou Juno), alimentando seu ressentimento.

Temas Centrais:

  1. Criação e Destruição:

    • O poema explora como as mesmas forças (fogo, paixão, energia) podem ser canalizadas para criar ou destruir. Hefesto representa o controle criativo, enquanto Vulcano simboliza a explosividade destrutiva.
  2. Memória e Transformação:

    • O trabalho de Hefesto é uma metáfora para a capacidade de moldar memórias, enquanto Vulcano representa as lembranças que irrompem de forma desordenada, como traumas ou ressentimentos.
  3. Dualidade das Emoções:

    • As figuras dos dois deuses refletem a ambivalência das emoções humanas: a capacidade de criar beleza e utilidade a partir do sofrimento, mas também o potencial de destruição latente.
  4. Ressentimento e Vingança:

    • A força de Vulcano é associada a emoções corrosivas e vingativas, destacando como sentimentos reprimidos podem destruir relações e até mesmo atingir figuras amadas.

Estilo e Linguagem:

  1. Intertextualidade Mitológica:

    • O poema utiliza figuras da mitologia para explorar temas humanos universais, aproximando o divino do cotidiano.
  2. Contrastes Visuais e Sonoros:

    • O poema alterna entre o controle calmo de Hefesto (com imagens como "martelo" e "bigorna") e o caos de Vulcano (com palavras como "eruptivo" e "brasas").
  3. Imagética Rica:

    • A descrição dos processos de forja e erupção é vívida e sensorial, com metáforas que conectam o físico (fogo, ácido) ao emocional (memórias, vingança).
  4. Ambiguidade Moral:

    • Nenhum dos deuses é inteiramente positivo ou negativo, reforçando a complexidade dos processos de criação e destruição.

Considerações Finais:

"Hefesto & Vulcano" é um poema que utiliza a mitologia para explorar as forças opostas e complementares da existência: a capacidade de moldar e criar algo significativo a partir da dor e a tendência destrutiva das emoções reprimidas. Com linguagem rica e simbólica, ele apresenta uma reflexão sobre memória, transformação e as emoções humanas, ressaltando como o mesmo fogo pode aquecer ou consumir, construir ou devastar. É uma obra que instiga o leitor a considerar os processos internos que moldam tanto a criação quanto a destruição em suas próprias vidas.

25/09/2007

Primeiras Lembranças

Pediram-me para que eu descrevesse a minha primeira lembrança. Pensei que seria coisa fácil, mas as lembranças vêm embaralhadas, confusas. Lembro das férias ou do fim-de-semana na praia, na casa do cata-vento; lembro da areia branca, ou melhor, pérola; lembro do sol forte, claro, brilhante, ou melhor, deixando a atmosfera brilhante. Lembro do meu fascínio pelo engenho, pela máquina do cata-vento, lembro de observar atentamente seus mecanismos, também sua beleza. Era um cata-vento destes antigos, prateado, tipo americano, o círculo de lâminas em cima de uma torre, também “de prata”, destas torres que lembram as de perfuração e busca de petróleo, também antigas, como antigas são as lembranças.
Também me lembro do primeiro dia em nossa nova casa, a da “Avenida Jovita Feitosa, 2290”. Com que orgulho eu “recitava” este endereço quando perguntado. Lembro do terraço amplo, com colunas retangulares, finas, em ladrilho amarelo, lembro de minha felicidade, de correr... Lembro de sair de um espaço apertado, a casa da vila onde morávamos, ou era da casa quase no centro da cidade? Destas que a porta da rua dá direto na calçada? Bom, enfim, a lembrança é de uma felicidade por poder correr, brincar, deslizar naquele terraço de cerâmica retangular vermelha. Lembro com nitidez de minha irmã, ainda em um andador, tentando me acompanhar, que graça!
Bom, o pedido foi da primeira lembrança, mas não sei o porquê, estas duas vêm juntas, sempre, talvez porque ambas façam referência à liberdade, ao vento, ao sol, à amplidão das areias da praia, à “amplidão” daquele terraço. Talvez a casa anterior me oprimisse, não sei; e isto não é mais primeiras lembranças, já é análise...
Ah! Antes de terminar só queria agregar à liberdade, ao sol, à amplidão do terraço e da praia, o fascínio pelo cata-vento, sua beleza, seu maquinário, estrutura e funcionamento. Vou ficando por aqui, tenho medo de sair da espontaneidade das lembranças de criança e começar a analisar no ofício de analista, de terapeuta.
Até mais...

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Análise

Este texto é uma narrativa memorialística que combina a evocação de memórias de infância com reflexões espontâneas sobre liberdade, felicidade e os elementos simbólicos que permeiam essas recordações. A escrita é envolvente, marcada por um tom introspectivo e poético, e revela o desafio de distinguir memórias puras da análise posterior. O autor transita entre a espontaneidade das lembranças e a inclinação analítica, compondo um texto que se situa entre o relato e a interpretação.


Estrutura e Desenvolvimento:

  1. Introdução: O desafio da memória

    • O texto começa com a solicitação para descrever a "primeira lembrança" e a constatação de que essa tarefa não é tão simples quanto parece.
    • Confusão e fragmentação: As lembranças surgem "embaralhadas, confusas", indicando a natureza subjetiva e fragmentada da memória, onde diferentes momentos se sobrepõem e dialogam.
  2. Primeira memória: A praia e o cata-vento

    • A descrição da praia e do cata-vento é rica em detalhes sensoriais e emocionais: "areia branca, ou melhor, pérola", "sol forte", "atmosfera brilhante". Esses detalhes destacam o encantamento infantil com o espaço e os elementos naturais.
    • O cata-vento é apresentado como uma figura central, símbolo de fascínio pela beleza e pelo movimento, mas também como uma representação do vento, da liberdade e do poder transformador das máquinas.
    • Simbologia do cata-vento: Ele atua como um eixo de ligação entre a dimensão concreta (o engenho) e o abstrato (a liberdade e o encantamento).
  3. Segunda memória: A casa na Avenida Jovita Feitosa

    • O autor narra o momento de mudança para uma nova casa, com ênfase no sentimento de liberdade proporcionado pelo terraço amplo.
    • Relação entre espaço e emoção: A transição de um ambiente opressor para outro mais aberto e espaçoso é vividamente retratada, com destaque para a alegria de correr e brincar.
    • A interação com a irmã no andador traz um elemento afetuoso e reforça o aspecto relacional das memórias.
  4. Reflexão e ligação das memórias

    • O autor percebe que as duas lembranças, embora distintas, compartilham elementos comuns: liberdade, amplidão, vento e sol. Essas conexões sugerem que o que marca as memórias não são apenas os eventos em si, mas as sensações e os significados atribuídos a eles.
    • Autoconsciência reflexiva: O texto reconhece o risco de abandonar a espontaneidade das lembranças ao entrar no campo da análise, especialmente no papel de terapeuta.
  5. Conclusão: Encerramento com humildade

    • O encerramento é marcado pela cautela em evitar a sobreintelectualização das memórias, preservando seu caráter espontâneo e lúdico.

Temas Centrais:

  1. Natureza Fragmentada da Memória:

    • O texto reflete como as memórias de infância emergem de forma entrelaçada e subjetiva, resistindo a uma ordenação linear ou objetiva.
  2. Liberdade e Espaço:

    • Tanto a praia quanto o terraço simbolizam liberdade e amplidão, contrastando com os espaços anteriores, que o autor sugere como opressivos.
  3. Fascínio pelo Movimento:

    • O cata-vento é uma metáfora para a curiosidade infantil e a relação com o movimento, o vento e o poder transformador da tecnologia.
  4. Conexão entre Análise e Memória:

    • O autor explora a tensão entre a memória pura e a análise, sugerindo que o processo de lembrar está inevitavelmente entrelaçado com o de interpretar.
  5. Sensações e Emoções na Construção das Memórias:

    • As descrições sensoriais ("areia pérola", "terraço de cerâmica vermelha") e emocionais ("felicidade por correr", "fascínio pelo cata-vento") destacam como os sentimentos moldam as lembranças.

Estilo e Linguagem:

  1. Tom Poético e Reflexivo:

    • A escolha de palavras e as imagens evocadas dão ao texto uma qualidade lírica. Termos como "pérola", "atmosfera brilhante" e "fascínio pelo engenho" criam uma conexão emocional com o leitor.
  2. Narrativa Fluida:

    • O texto é escrito em fluxo, refletindo o próprio ato de recordar, com saltos entre memórias e associações espontâneas.
  3. Ambiguidade e Subjetividade:

    • A dificuldade em isolar uma "primeira lembrança" reflete a subjetividade e a complexidade do processo de memória.
  4. Interseção entre Prosa e Análise:

    • O texto oscila entre uma narrativa memorialística e um ensaio reflexivo, tornando-o híbrido e multifacetado.

Considerações Finais:

"Primeiras Lembranças" é um texto que combina narrativa, poesia e reflexão para explorar o impacto das memórias de infância na formação do sujeito. Ele destaca como espaços, sensações e emoções constroem as lembranças, e como o ato de recordar inevitavelmente se mistura à análise e à interpretação. Com um tom íntimo e introspectivo, o autor conduz o leitor a revisitar não apenas as lembranças em si, mas também o processo de reconstituí-las, preservando sua beleza espontânea e vulnerável. É uma obra que celebra o poder das pequenas experiências em moldar o imaginário e a identidade.