04/03/2025

Quem é que olha?



Certa vez, minha mãe, mulher muito "louca", me deu uma espécie de luneta através da qual, segundo ela, eu poderia ver melhor o mundo. E como era lindo o mundo que a mim se apresentava através daquele pequeno tubo! E como eram diferentes—forma, cor, movimento—a cada vez que por ele observava as pessoas e as coisas.

De outra vez, meu pai, homem muito "sério", me deu também uma luneta, através da qual, segundo ele, eu igualmente poderia ver melhor o mundo. E como era claro o mundo que a mim se apresentava através daquele pequeno tubo! E como eram bem definidos—forma, cor, movimento—as pessoas e as coisas por mim observadas através dele.

Minha mãe me presenteou com um calidoscópio. Meu pai, com uma luneta propriamente dita.

Como os dois me deixaram muito à vontade com meus presentes, logo em mim se instalou uma dúvida: ver o mundo pelas lentes do calidoscópio ou do telescópio refrator? O que mais me agradava— a dança das formas e cores? A folia? Ou a precisão dos contornos? A seriedade?

Meus pais, que intuíam a dúvida, me deram como resposta apenas um sorriso e um dito:
— A vida lhe ensinará como e qual das duas usar.

E se retiraram para sua alcova. Para meus olhos e ouvidos de criança, aquilo era puro enigma.

Hoje, já não sei dizer se o enigma foi resolvido. Sei apenas que, às vezes, me deixo perder no calidoscópio e, às vezes, procuro o foco da luneta. Mas sempre me pergunto: quem é que olha?

Outra vez

A borda aborda
quem borda, quem escreve, quem ora.

Por hora ou por ora?
Ambas a borda aborda.

Sim, não, talvez?
A borda aborda: - Sua vez!

Cara, coroa, par, ímpar?
A borda sorri de você, outra vez.

xxx

Seu poema Outra vez tem uma construção lúdica e filosófica, explorando jogos de palavras, sonoridade e ambiguidade. Aqui estão alguns pontos de análise:

1. Estrutura e Ritmo

O poema tem um ritmo ágil e cadenciado, sustentado pela repetição da palavra “borda” e pelo jogo sonoro com “aborda.” A alternância de frases curtas e diretas dá um tom quase de enigma ou provocação, o que reforça a ideia da borda como um espaço de dúvida, transição e destino incerto.

2. Jogo de Palavras e Ambiguidade

O poema brinca com diferentes sentidos de “borda”:

Bordar (costurar, tecer): remetendo à ideia de criar algo, seja com linha ou com palavras.

Abordar (trazer à tona, tratar de um tema): como se a borda fosse ativa, convocando o sujeito a decidir, refletir.

Borda como limite: novamente, há a evocação da ideia da fronteira, do entre-lugar, como no poema anterior.


A oscilação entre “por hora ou por ora” e “sim, não, talvez?” reforça a incerteza do momento limítrofe, onde a decisão ou a passagem de um estado a outro está sempre prestes a acontecer.

3. A Borda como Entidade

Diferente do primeiro poema, onde a borda é um conceito filosófico, aqui ela ganha uma presença quase personificada. Ela “aborda” os sujeitos, zomba deles, coloca-os diante de escolhas inevitáveis, como um arquétipo do destino ou da própria dúvida existencial.

4. Simbolismo e Jogo de Azar

A menção a “cara, coroa, par, ímpar” reforça o caráter lúdico do poema, conectando-o à ideia do acaso e das decisões binárias. No entanto, a borda, novamente, surge como algo além da dualidade, algo que escapa ao simples jogo de oposições.

5. Tom e Impressão Final

O tom é mais irônico e brincalhão que no primeiro poema, mas mantém um substrato filosófico e existencial. A repetição de “Outra vez” no título e no final sugere um ciclo, uma recorrência inevitável, como se estivéssemos sempre voltando a essa borda, sendo desafiados por ela.

Conclusão: um poema curto, mas denso, que brinca com a linguagem e a metafísica de maneira provocativa. Ele complementa A borda, expandindo o conceito de um jeito mais dinâmico e interativo. Se quiser explorar ainda mais essa ideia, pode ser interessante continuar jogando com essa noção de limite e decisão.

A borda



Sonhei contigo...
entre mares e precipícios.
Entre nebulosas e supernovas.
Entre isso e aquilo...

Acordei com este pensamento emprestado e urgente:

"Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém que o que mais queremos é tirar essa pessoa de nossos sonhos e abraçá-la." (Clarice Lispector)

Falta, desejo, objeto.
Cara, coroa, borda...
as três faces da velha moeda.
Ah! Familiar e estranha economia.

xxx

Seu poema, A borda, tem uma construção instigante, com uma atmosfera onírica e filosófica. Aqui estão alguns pontos de análise:

1. Estrutura e Ritmo

O poema possui uma estrutura solta, mas bem equilibrada. A alternância entre imagens vastas (mares, precipícios, nebulosas, supernovas) e conceitos abstratos (falta, desejo, objeto) cria um movimento entre o macro e o micro, entre o cósmico e o íntimo. Esse jogo entre escalas amplia a sensação de vertigem e imensidão emocional.

O ritmo é fragmentado, o que reforça o tom reflexivo e dá espaço para o leitor habitar os significados.

2. Intertextualidade

A citação de Clarice Lispector não apenas insere uma referência literária de peso, mas também serve como um eixo que amarra a primeira e a segunda parte do poema. Funciona quase como uma epifania dentro do texto, traduzindo o desejo latente de concretizar o que é apenas sonho.

3. Simbolismo da Moeda

O jogo com a moeda – "cara, coroa, borda" – é um achado interessante. Tradicionalmente, pensamos a moeda como dicotômica (duas faces), mas o poema aponta para uma terceira via: a borda. Essa escolha evoca o limiar, o entre-lugares, a condição de suspensão e incerteza, que dialoga com o tom do poema. Essa "familiar e estranha economia" remete tanto à economia psíquica do desejo e da falta (quase lacaniana) quanto a uma espécie de lógica paradoxal da existência.

4. Temas

Sonho e realidade: a dificuldade de trazer o que está na dimensão do desejo para a concretude do real.

Falta e desejo: estruturantes do sujeito, ligados à impossibilidade de possuir plenamente o outro.

O indizível e o limiar: o poema se situa na borda, no espaço intermediário, no campo da impossibilidade e do desejo que nunca se completa.


5. Impressão Final

O poema é delicado e filosófico, com um tom de introspecção e melancolia. Ele sugere mais do que explica, o que o torna instigante e aberto a múltiplas interpretações. A escolha de imagens amplas e a construção do conceito de borda são seus pontos mais fortes.


Louco morto-vivo


Fiquei louco
vocês podem me internar.
Ando a lembrar do que não existiu,
tenho saudades do que não vivi.
Falo no silêncio,
calo ao falar.
Procuro braços para caminhar,
pernas para abraçar...
Ah! E eu morri...
Só que fui vivo o bastante para não
lhes avisar!

xxx

O poema Louco morto-vivo apresenta uma atmosfera marcada pela contradição e pela alienação subjetiva, elementos que evocam tanto um possível delírio quanto uma reflexão existencial profunda. A construção do eu lírico se dá por meio de paradoxos e inversões, sugerindo uma desconexão com a realidade ou uma forma de percepção que transcende o senso comum.

Análise temática

O título Louco morto-vivo já antecipa a tensão entre estados opostos: loucura e sanidade, vida e morte. O poema se estrutura em torno dessa dualidade, reforçando a ideia de um sujeito que habita uma zona liminar entre opostos.

1. A loucura como ruptura

"Fiquei louco / vocês podem me internar."
O início direto e incisivo sugere um reconhecimento da própria condição, mas também um desafio à normatividade. A "loucura" pode ser lida tanto no sentido clínico quanto como um afastamento das convenções sociais e lógicas ordinárias.



2. A memória do impossível

"Ando a lembrar do que não existiu, / tenho saudades do que não vivi."
O paradoxo expõe uma subjetividade que se recusa a se ater ao real empírico. O desejo e a lembrança se misturam, revelando um anseio por algo que nunca foi experimentado — uma nostalgia do inexistente.



3. A inversão das funções comunicativas e corporais

"Falo no silêncio, / calo ao falar."

"Procuro braços para caminhar, / pernas para abraçar..."
Aqui, o poema adentra um terreno surrealista, onde os sentidos e funções do corpo são transpostos. A linguagem, que deveria ser um meio de expressão, se torna contraditória: o silêncio se torna fala e a fala se torna silêncio. Essa inversão sugere tanto uma falha na comunicação quanto um modo de expressão que transcende o convencional. O deslocamento das funções dos membros corporais também remete a uma desconstrução do próprio corpo e da identidade.



4. A morte como revelação silenciosa

"Ah! E eu morri... / Só que fui vivo o bastante para não / lhes avisar!"
O desfecho traz um tom irônico e impactante. A morte aqui não parece ser literal, mas sim um afastamento radical da realidade compartilhada. O eu lírico experimenta uma espécie de morte em vida, mas mantém para si essa percepção, talvez como um último ato de autonomia.




Interpretação psicanalítica

Do ponto de vista psicanalítico, o poema pode ser interpretado como uma expressão de descontinuidade do ego, algo comum na psicose ou em estados de grande sofrimento psíquico. A fragmentação da experiência e a inversão das funções do corpo podem indicar um rompimento com a realidade, enquanto a última estrofe sugere uma espécie de gozo na alienação — ele "morre", mas não compartilha isso com os outros, preservando sua verdade interna.

Alternativamente, o poema também pode ser lido como uma meditação existencialista sobre a identidade e a alienação. O eu lírico não pertence ao mundo dos vivos nem ao dos mortos, mas habita uma espécie de interstício, onde a loucura é tanto uma maldição quanto uma forma de lucidez.

Conclusão

Louco morto-vivo é um poema que desafia a lógica tradicional e propõe uma experiência subjetiva intensa e paradoxal. A linguagem fragmentada e os paradoxos reforçam um sentimento de estranhamento, tornando a leitura ao mesmo tempo inquietante e fascinante.


03/03/2025

Conhecer



Do peito ao conceito,
o caminho do conhecimento,
com efeito, é estreito.

xxx

O poema Conhecimento apresenta uma estrutura breve e rimada, com um ritmo fluido que reforça sua mensagem sobre a jornada do saber. Apesar de sua concisão, ele carrega um significado profundo ao sugerir a complexa transição entre experiência emocional (do peito) e formulação racional (ao conceito).

Análise

1. Título – "Conhecimento"
O título antecipa o tema central do poema: a aquisição do saber. No entanto, o poema não trata o conhecimento como algo meramente acadêmico ou intelectual, mas como um percurso que envolve um deslocamento subjetivo.


2. "Do peito ao conceito,"
A metáfora do "peito" representa o sentir, o vivido, o emocional. Já "conceito" simboliza a abstração, a teorização, a formulação racional do saber. Essa oposição evoca a ideia de que o verdadeiro conhecimento não é apenas intelectual, mas passa por uma experiência interna e subjetiva antes de se tornar um entendimento estruturado.


3. "o caminho do conhecimento,"
Esse verso reforça a noção de que o conhecimento não é algo instantâneo, mas um percurso. Há um trajeto a ser percorrido, sugerindo esforço, descoberta e transformação.


4. "com efeito, é estreito."
O fecho do poema destaca a dificuldade desse caminho. "Estreito" pode ser interpretado como árduo, seletivo, exigente. A expressão "com efeito" reforça a conclusão lógica do raciocínio anterior, como se dissesse: inevitavelmente, conhecer exige um percurso difícil e cuidadoso.



Interpretação geral

O poema sugere que o conhecimento verdadeiro não se dá de maneira superficial ou automática. Ele exige um trajeto que parte da experiência subjetiva (peito) para a formulação racional (conceito), mas esse caminho não é amplo ou fácil – é estreito, exigindo reflexão, esforço e talvez até um certo sofrimento ou renúncia.

A escolha da estrutura rimada e fluida contribui para a musicalidade e acessibilidade do poema, ao mesmo tempo em que transmite uma mensagem densa e filosófica.


Objetos de desejo



Objetos de desejo 
paradoxos ensejam,
onde Nada e Falta pelejam...

xxx

O poema Objetos de Desejo apresenta uma estrutura concisa e altamente conceitual, abordando a complexa dinâmica do desejo a partir de um viés filosófico e psicanalítico.

Análise

1. Título – "Objetos de Desejo"
O título remete imediatamente à teoria psicanalítica do desejo, especialmente na tradição lacaniana, onde o desejo está sempre atrelado a um objeto que nunca é plenamente alcançado. O "objeto de desejo" pode ser interpretado como aquilo que motiva e movimenta o sujeito, mas que, paradoxalmente, nunca é plenamente satisfeito.


2. "Objetos de desejo, paradoxos ensejam,"
O primeiro verso sugere que os objetos de desejo não são simples ou evidentes, mas carregam contradições e paradoxos. Isso reforça a ideia de que o desejo nunca é linear; ele se sustenta na ausência, na impossibilidade, e muitas vezes no próprio movimento de buscar sem encontrar.


3. "onde Nada e Falta pelejam..."
Aqui, a profundidade conceitual se intensifica. "Nada" e "Falta" são conceitos centrais na teoria psicanalítica e existencialista. O "Nada" pode representar o vazio absoluto, o que escapa da significação, enquanto a "Falta" é aquilo que estrutura o desejo, o que impele o sujeito a buscar, mesmo sem alcançar. A palavra "pelejam" sugere um embate entre esses dois conceitos: será que o desejo busca preencher um vazio ou apenas se move em torno da falta?



Interpretação geral

O poema propõe, de maneira sintética e densa, uma reflexão sobre a natureza do desejo, sua constituição paradoxal e a tensão entre ausência e busca. A linguagem enxuta e filosófica sugere um tom quase aforístico, aproximando-se de uma poética conceitual que dialoga tanto com a psicanálise quanto com a tradição filosófica do desejo.

É um poema curto, mas que carrega um grande potencial de reflexão, abrindo espaço para múltiplas leituras e interpretações sobre o que realmente move o desejo humano.