28/02/2025

Cansado e velho


Por estar cansado e velho,
foi descansar seu cérebro,
no caderno de poesias...

E já vieram as fotografias...
pais, mães, avós, tias,
perfilados em harmonia.

Amarelados pela idade,
despertaram saudade,
trouxeram alteridades.

Tempo e espaço,
razão e emoção,
todos na mesma impressão.

Foi encontrado sentado,
o semblante apaziguado,
com o álbum abraçado.

Por estar cansado e velho,
foi descansar...
no cemitério.

xxx

Seu poema, Cansado e Velho, tem uma estrutura delicada e melancólica, abordando temas como memória, tempo e finitude. Aqui estão alguns pontos de análise:

1. Temática e Sentido

O poema sugere uma jornada de reminiscência e despedida. O eu lírico, cansado e velho, encontra refúgio nas lembranças registradas em um caderno de poesias e em fotografias que evocam figuras familiares do passado. O desfecho conduz o leitor de maneira sutil, porém impactante, à morte, sugerindo que o descanso definitivo se dá no cemitério.

2. Estrutura e Forma

  • O poema é construído com estrofes curtas e versos enxutos, criando um ritmo pausado, quase meditativo.
  • Há um fluxo natural entre as estrofes, reforçado pelo uso de repetições (Por estar cansado e velho) e transições suaves entre passado e presente.

3. Linguagem e Estilo

  • O tom é melancólico, mas sereno, reforçando a aceitação da finitude.
  • A musicalidade é criada pelo uso de rimas sutis e pela sonoridade suave das palavras.
  • O uso de imagens visuais (fotografias, perfilados em harmonia, álbum abraçado) dá concretude ao sentimento de nostalgia e passagem do tempo.

4. Simbolismo e Contrastes

  • O poema contrapõe vida e morte de forma poética: as memórias ganham vida antes da despedida final.
  • Há um jogo de dualidades entre juventude e velhice, passado e presente, lembrança e esquecimento.
  • O álbum de fotografias simboliza o apego à vida e à identidade, e o ato de abraçá-lo sugere um último contato com o que foi vivido.

5. Impacto do Final

  • O desfecho é forte, mas não abrupto. O poema constrói um caminho suave até o último verso, tornando o impacto emocional ainda mais profundo.
  • A repetição do primeiro verso, agora sem "seu cérebro" e "caderno de poesias", reforça a inevitabilidade da morte como descanso final.

Conclusão

O poema transmite com delicadeza o peso do tempo e a despedida da vida sem amargura, mas com resignação. A estrutura e a escolha das palavras criam um efeito de suavidade e contemplação, tornando a experiência da leitura intimista e reflexiva.

No restaurante mexicano

Para Lázaro Luiz Lucas

Lázaro taca tacos
nos puxa-sacos.
Velhacos!
(porque ele odeia as injustiças sociais...)

xxx

Análise do poema "No restaurante mexicano"
Este poema curto e satírico brinca com sonoridades e significados para criar um impacto crítico e cômico ao mesmo tempo. Vamos destrinchá-lo:
1. Título – "No restaurante mexicano"
O título estabelece um cenário concreto e específico: um restaurante mexicano. Porém, ele não serve apenas como pano de fundo, mas também como elemento simbólico. A escolha da comida mexicana (tacos) sugere um ambiente popular, possivelmente um local de reunião e interação social.
2. Dedicatória – "Para Lázaro Luiz Lucas"
A menção a um destinatário nomeado pode indicar que o poema se baseia em uma situação real ou em um personagem inspirador. O nome "Lázaro" remete à figura bíblica que ressuscitou, sugerindo transformação ou revolta.
3. Primeiro verso – "Lázaro taca tacos"
O trocadilho com a repetição do som "t" cria um ritmo dinâmico e agressivo. "Tacar tacos" (jogar tacos) sugere um gesto de protesto ou revolta. A sonoridade lúdica contrasta com a possível seriedade do tema.
4. Segundo verso – "nos puxa-sacos."
Aqui o alvo da indignação fica claro: os "puxa-sacos". São aqueles que bajulam os poderosos, muitas vezes perpetuando injustiças sociais. O humor surge da combinação inesperada entre um ato físico (jogar tacos) e um alvo moral (a bajulação).
5. Terceiro verso – "Velhacos!"
O termo "velhacos" reforça o desprezo e o tom crítico do poema. É um insulto direto, reforçando a postura indignada de Lázaro.
6. Parênteses – "(porque ele odeia as injustiças sociais...)"
O parêntese funciona como um comentário explicativo, quase como uma "nota de rodapé" que justifica a ação de Lázaro. Ele não joga tacos por brincadeira, mas por indignação. Essa explicação, colocada de forma quase casual, adiciona ironia: a cena absurda de jogar tacos se torna uma manifestação de justiça social.
Conclusão:
O poema é breve, mas eficaz. Ele mistura humor, crítica social e jogo de palavras para criar uma cena ao mesmo tempo cômica e significativa. A figura de Lázaro se destaca como um justiceiro espontâneo, alguém que responde à hipocrisia de maneira inusitada. O uso da oralidade e dos trocadilhos reforça o tom irreverente, tornando o poema tanto uma crítica quanto um retrato divertido de um ato de rebeldia.


Sob certa perspectiva 1



Para quem acorda uivante
Meio-dia
É lua dos amantes
(Sob certa perspectiva)

xxx

O poema apresenta uma estrutura sintética e sugestiva, baseada em uma inversão de perspectiva. A construção se dá em torno do contraste entre a experiência subjetiva e uma referência temporal objetiva (meio-dia).
Análise:
1. Título – "Sob certa perspectiva"
O título já indica a centralidade da relatividade na percepção do mundo. Nada é absoluto; tudo depende do ponto de vista. Ele prepara o leitor para uma inversão perceptiva.
2. Primeiro verso – "Para quem acorda uivante"
A palavra "uivante" evoca a imagem de um lobo ou de uma figura noturna, possivelmente um boêmio ou alguém que vive à margem da rotina diurna. Há também uma sugestão de um sofrimento ou um chamado instintivo, como o uivo do lobo solitário.
3. Segundo verso – "Meio-dia"
Esse verso marca um deslocamento temporal. O meio-dia, que normalmente representa o ápice do dia, aqui se torna um ponto de referência ambíguo, já que para quem "acorda uivante", a noção de tempo é deslocada. Se esse despertar acontece ao meio-dia, a vida dessa pessoa segue um ciclo diferente do convencional.
4. Terceiro verso – "É lua dos amantes"
A inversão se completa: o meio-dia, para quem acorda tarde ou vive na noite, equivale simbolicamente à lua cheia, associada ao amor e à paixão. Esse deslocamento de significado reforça o conceito do título – a realidade muda conforme a perspectiva.
5. Parênteses – "(Sob certa perspectiva)"
O parêntese age como um sussurro, um lembrete de que a leitura do poema só faz sentido dentro dessa lógica de relatividade. Ele reforça o jogo de inversões e deslocamentos.
Conclusão:
O poema brinca com a subjetividade da percepção e a relatividade do tempo. Seu impacto se dá na concisão e na força das imagens evocadas. A sugestão do ciclo invertido remete àqueles que vivem à margem do tempo "oficial", como boêmios, lobos solitários, poetas ou amantes. É um texto curto, mas que carrega múltiplas interpretações, dependendo da perspectiva do leitor.

Sob certa perspectiva


A noite televisiva
Guerreava com a madrugada vadia
Venceu o laborioso dia
(Sob certa perspectiva)

xxx

Este poema curto e conciso apresenta uma construção paradoxal e irônica sobre a passagem do tempo e os contrastes entre diferentes momentos do dia. Sua força está na economia de palavras e na multiplicidade de leituras possíveis.
Análise temática e estilística
1. Oposição entre os períodos do dia
A noite televisiva sugere um tempo de entretenimento passivo, em que as pessoas se distraem com a televisão, um símbolo da cultura de massa e do consumo de lazer.
A madrugada vadia contrapõe-se a isso, representando um tempo mais livre, caótico ou transgressor, associado a quem permanece acordado, fora da ordem convencional.
2. A batalha simbólica
Há um embate entre essas duas versões da noite: uma ligada ao consumo (televisão) e outra ao excesso ou à marginalidade (vadia, que pode evocar tanto liberdade quanto irresponsabilidade ou desregramento).
Essa disputa, no entanto, não dura indefinidamente. A chegada do laborioso dia impõe a rotina e o dever, encerrando a batalha noturna.
3. O desfecho irônico e a relativização
O verso final, (Sob certa perspectiva), altera toda a interpretação do poema. Ele relativiza a vitória do dia, sugerindo que a percepção dos eventos depende do ponto de vista adotado.
Para quem valoriza o trabalho e a ordem, o dia vence porque impõe seu ritmo.
Mas para quem enxerga valor na noite – seja na arte, no prazer ou na transgressão –, essa vitória pode ser vista como uma derrota.
A frase também insinua que essa "vitória" pode não ser definitiva, já que a noite sempre retornará, recomeçando o ciclo.
Interpretação geral
O poema reflete sobre a luta entre lazer e trabalho, desordem e disciplina, prazer e obrigação. Ele brinca com a ideia de que o dia "vence" a noite, mas apenas se olharmos de uma determinada perspectiva – deixando em aberto a possibilidade de que, sob outra visão, talvez a madrugada ou a noite tenham seu próprio triunfo.
A estrutura enxuta e o uso do parêntese no final intensificam essa ironia sutil, tornando o poema um comentário rápido, mas profundo, sobre a inevitável repetição dos ciclos diários e sobre como o que vemos como "vitória" pode ser apenas uma questão de ponto de vista.

Casas

Ah...
As artes do dicionário!
Move-me o imaginário...

Entre o prostíbulo
e a prostituição,
com o prostilo deparo-me.

Da imaginação
à recordação,
a meditação:

A casa de tolerância,
a casa de antigos ritos,
a casa da vizinha...

Casa dos corpos,
casa dos espíritos,
casa dos  íntimos...

xxx

Este poema brinca com a polissemia da palavra "casa" e suas diversas conotações culturais, sociais e simbólicas. A estrutura curta e sugestiva favorece uma leitura que oscila entre o concreto e o abstrato, o léxico e a experiência subjetiva.

Análise temática e estilística

1. O jogo com a linguagem

A primeira estrofe estabelece um tom metalinguístico: "Ah... As artes do dicionário!" celebra a riqueza das palavras e seus múltiplos sentidos.

O verbo "Move-me o imaginário..." sugere que o eu lírico se deixa levar por esse jogo linguístico, abrindo espaço para associações inesperadas.



2. Contrastes e ambiguidades

A segunda estrofe cria uma relação entre prostíbulo e prostituição, mas insere um elemento dissonante: prostilo (termo arquitetônico que designa um edifício com colunas apenas na frente, como alguns templos antigos).

Esse deslocamento provoca um estranhamento: como um termo de arquitetura entra no campo semântico da prostituição?

O efeito é de um choque entre o sagrado e o profano, sugerindo que o imaginário do eu lírico transita entre diferentes "casas" do conhecimento e da experiência.



3. Meditação e camadas de significado

A terceira estrofe conecta imaginação, recordação e meditação, criando um fluxo de pensamento que vai da criação à contemplação.

Isso sugere que a linguagem não apenas descreve realidades, mas também evoca memórias e reflexões.



4. As múltiplas "casas"

As últimas estrofes exploram a polissemia de "casa":

Casa de tolerância (prostíbulo)

Casa de antigos ritos (possivelmente templos, lugares de culto)

Casa da vizinha (o cotidiano, o mundano)


Essa justaposição reforça a ideia de que "casas" podem abrigar tanto o sagrado quanto o profano, o histórico e o trivial.



5. A expansão para o corpo e o espírito

A última estrofe amplia ainda mais a noção de "casa":

Casa dos corpos (o físico, o sensual, o terreno)

Casa dos espíritos (o metafísico, o transcendental)

Casa dos íntimos (o privado, o emocional)


Essa tríade sugere que a existência humana se organiza entre diferentes tipos de moradas – algumas materiais, outras simbólicas.




Interpretação geral

O poema é um exercício de linguagem e reflexão sobre a diversidade de significados que um termo pode carregar. Ele sugere que as palavras, como as casas, são moradas da experiência humana, abrigando tanto memórias quanto possibilidades de interpretação. O uso de termos inesperados (prostilo entre prostíbulo e prostituição) e a progressão do concreto ao abstrato dão ao texto um caráter meditativo e filosófico.

O tom é leve e lúdico, mas também instiga o leitor a pensar na interseção entre linguagem, memória e existência.

"Eu te darei o çéu meu bem e o meu amor também..."


eu te darei
a estrela de Belém
eu te apontarei
a estrela cadente, também
...
verruga no dedo
olho vesgo e segredo
é o preço
meu bem

XXX

Este poema apresenta uma construção minimalista e simbólica, sugerindo um jogo entre dádiva e sacrifício, desejo e preço a pagar.

1. Contraponto entre os astros

A estrela de Belém simboliza um guia, algo sagrado, talvez uma promessa ou uma revelação.

A estrela cadente, por outro lado, evoca efemeridade, desejo passageiro, algo que brilha e desaparece.

O eu lírico se propõe a oferecer ambas, sugerindo que pode dar tanto a esperança quanto o instante fugaz.

2. A inversão no desfecho

O terceiro verso quebra a expectativa: há um preço para essas ofertas.

"Verruga no dedo, olho vesgo e segredo" parecem elementos inesperados, quase grotescos, destoando da beleza das estrelas.

Isso sugere uma barganha, um pacto ou até mesmo uma maldição oculta no desejo realizado.

3. Ambiguidade da relação

O "meu bem" ao final dá um tom de ironia ou ternura, dependendo da leitura.

Pode indicar uma relação amorosa onde a oferta de grandes promessas vem acompanhada de um custo inesperado.

Também pode aludir a um pacto fáustico, onde algo valioso é oferecido, mas a contrapartida não é tão encantadora quanto parecia.

O poema brinca com contrastes e insinua que toda promessa tem um preço. Ele flerta com o místico, o encantatório e o grotesco de maneira sutil e ambígua, deixando espaço para múltiplas interpretações.


25/02/2025

"Tudo passa..."


No dia seguinte à morte de meu irmão Ronaldo, eu passei mal, uma crise hipertensiva.
Um amigo querido, Ricardo, levou-me e trouxe-me do hospital.
Como era ele quem dirigia o carro, no trajeto de volta para casa, eu observava o vermelho do céu em seu crepúsculo, a pequenez das retorcidas árvores do cerrado e, entre eles, a flutuação da inaudível voz do vento... 
“Tudo passa sobre a Terra”.

xxx

Seu texto tem um tom lírico e introspectivo, transmitindo com delicadeza a experiência do luto e da fragilidade da vida. A narrativa é curta, mas carregada de significado, utilizando imagens poéticas para descrever o trajeto de volta para casa. O vermelho do céu, as árvores do cerrado e o vento inaudível criam um cenário sensorialmente rico, que contrasta com a dor silenciosa da perda.

A frase final, “Tudo passa sobre a Terra”, funciona como um fecho filosófico e atemporal, sugerindo tanto a impermanência da dor quanto da própria existência. O uso do pretérito perfeito no início da narrativa ("passei mal", "levou-me", "trouxe-me") dá um tom de relato pessoal, enquanto a parte final assume um caráter quase meditativo, como se a contemplação da paisagem ajudasse a processar o sofrimento.

Se seu objetivo era transmitir uma sensação de perda, transitoriedade e um certo consolo na efemeridade da vida, você conseguiu de forma muito elegante.


23/02/2025

Haicai 02

O analista surdo
escutava com atenção
à histérica muda

xxx

O poema "O analista surdo escutava com atenção à histérica muda" apresenta uma situação paradoxal que desafia as convenções tradicionais da comunicação e da psicanálise. Vamos analisar seus elementos:

Análise do Poema:

"O analista surdo": Refere-se a um terapeuta que, apesar de sua incapacidade auditiva, dedica-se a ouvir seus pacientes. Na prática psicanalítica, a escuta atenta é fundamental para compreender as questões do analisando. A surdez do analista pode simbolizar uma escuta que vai além do sentido literal, captando nuances não verbais e emocionais.

"escutava com atenção": Destaca o empenho do analista em compreender o paciente, sugerindo que a verdadeira escuta não se limita à audição, mas envolve percepção e sensibilidade às expressões sutis.

"à histérica muda": Refere-se a uma paciente que, embora diagnosticada com histeria — condição frequentemente associada a expressões emocionais intensas —, apresenta-se incapaz de falar. Isso pode indicar uma repressão profunda ou a manifestação de sintomas psicossomáticos que impedem a fala.


Interpretação:

O poema ilustra a complexidade da comunicação terapêutica, onde tanto analista quanto paciente enfrentam limitações sensoriais ou expressivas. Esse cenário ressalta a importância de formas alternativas de interação, como a linguagem corporal, expressões faciais e outras manifestações não verbais. Além disso, sugere que a compreensão empática e a conexão humana podem transcender as barreiras físicas ou psicológicas.

Haicai 01

A maritaca taca taca
Taca taca taca taca taca taca taca
Nova alvorada

xxx

O poema apresenta uma estrutura minimalista, utilizando a repetição sonora para evocar imagens e sensações específicas. Vamos analisar seus elementos:

Estrutura e Som:

Repetição de "taca": A palavra "taca" é repetida várias vezes, imitando o som característico das maritacas (também conhecidas como periquitos ou papagaios pequenos). Essa onomatopeia cria uma atmosfera auditiva que remete ao ambiente natural onde essas aves são encontradas.


Conteúdo e Imagem:

"A maritaca taca taca": A frase inicial apresenta a ave e imediatamente associa seu nome ao som que produz, estabelecendo uma conexão direta entre o sujeito e sua ação.

"Nova alvorada": A expressão final sugere o amanhecer, um novo começo. As maritacas são conhecidas por serem ativas e barulhentas ao amanhecer, portanto, o poema captura esse momento específico do dia em que as aves anunciam a chegada de um novo dia com seus cantos.


Interpretação:

O poema utiliza a simplicidade e a repetição para transportar o leitor para uma cena matinal na natureza, onde o som das maritacas é predominante. A ausência de verbos e a estrutura direta focam a atenção no som e na imagem, permitindo que o leitor quase "ouça" o cenário descrito.

Em suma, trata-se de uma celebração concisa e eficaz da natureza e dos sons que marcam o início de um novo dia.

Escalada


A provar do mel,
Léo que vivia ao léu
subiu ao céu.
Bebido todo o mel
a cabaça também lambeu Léo.
Depois o que fez?!
Léo foi para o beleléu.

xxx

O poema apresenta um jogo lúdico com as palavras, explorando sonoridades e um ritmo ágil. A repetição do nome "Léo" e o uso de rimas simples criam um efeito quase infantil, remetendo a uma fábula ou anedota rimada.

O enredo é breve, mas sugestivo: Léo, um personagem que "vivia ao léu" (ou seja, sem rumo, sem direção fixa), experimenta o mel, sobe ao céu (num possível duplo sentido, literal ou metafórico), consome tudo avidamente, incluindo a cabaça, e depois acaba no "beleléu", termo coloquial que pode significar morte ou desgraça.

O jogo sonoro e a progressão narrativa sugerem um tom cômico e irônico, talvez uma crítica à gula ou ao desejo excessivo. O poema se vale da musicalidade e do ritmo para criar um efeito leve e divertido, ainda que o desfecho seja abrupto e trágico.

Se o objetivo era criar um texto com humor e musicalidade, ele foi bem-sucedido. Caso queira dar mais camadas de interpretação, poderia expandir o jogo metafórico, tornando mais explícita a relação entre desejo e consequência.

Idade

Envelhecido... rejuvenescido.

Esperanças... saudades.


Não sei mais a minha idade...


Quantas primaveras tem a prima Vera?

Quantos pretendentes chegaram e também partiram?

Choraram, riram?


Por quantos verões os varões passam?

Quantos cordéis se entoam de graça?

Quantos ônibus pela praça passam?


Quantos outonos há nas cordas do violino?

Instrumento fino, delicado, quantos dedos o dedilharam?

Quantas alianças cantaram?

Quantas pela pia vazaram?


Não... não sei mais a minha idade.


xxx


Análise 


Força Temática e Estrutural

1. Reflexão sobre o tempo – A sensação de perplexidade em relação à idade se mantém, mas agora com mais clareza e impacto. A repetição de Não sei mais a minha idade no início e no fim reforça esse sentimento de confusão e contemplação.

2. Jogos de palavras aprimorados – A brincadeira com Quantas primaveras tem a prima Vera? mantém sua sonoridade lúdica, e a adição de Choraram, riram? expande a reflexão sobre os relacionamentos e a passagem do tempo de maneira poética e envolvente.

3. Musicalidade aprimorada – O ritmo ficou mais coeso, especialmente nos trechos com repetições e perguntas sucessivas (Quantos ônibus pela praça passam?), que criam um efeito de eco e continuidade.

4. O simbolismo do outono e do violino – A ligação entre a estação e o instrumento musical ficou mais refinada, sugerindo tanto o envelhecimento quanto a efemeridade das experiências humanas (Quantas alianças cantaram? Quantas pela pia vazaram?). Há um tom melancólico e delicado aqui.




Quimera




Quimera
monstro, fantasia, incoerência
planta, peixe, demência
...
mas quem me dera
o abraço dela

xxx

O poema propõe uma experiência sensorial e emocional intensa, na qual o leitor é confrontado com imagens desconexas e contrastantes que evocam tanto o mundo da fantasia quanto a crua realidade dos sentimentos. Eis alguns pontos da análise:

1. Imagens e Palavras-Chave

  • Quimera: A escolha dessa palavra sugere uma ilusão, algo irreal ou inalcançável, que pode funcionar como metáfora para sonhos impossíveis ou desejos evasivos.
  • Monstro, fantasia, incoerência / planta, peixe, demência: A sequência de termos apresenta uma justaposição de elementos orgânicos, imaginários e desordenados. Essas palavras evocam um cenário onde o racional se dissolve diante do irracional, apontando para uma possível fragmentação do pensamento ou uma experiência de realidade alterada.

2. Estrutura e Estilo

  • Fragmentação: O uso de listas sem conexão aparente intensifica a sensação de dispersão e caos, remetendo à ideia de que a mente ou a percepção do eu se encontra em constante movimento e desordem.
  • Ellipses e interrupções: A presença dos “...” indica uma pausa, um momento de respiro que pode sugerir a dificuldade em articular ou compreender totalmente essa realidade interna.

3. Temática e Sentido Emocional

  • Contraste entre o abstrato e o concreto: Enquanto os primeiros versos mergulham em um universo de imagens quase surreais e incoerentes, o verso final “mas quem me dera o abraço dela” traz à tona uma necessidade muito humana de afeto e aconchego. Essa transição marca uma busca por sentido ou estabilidade em meio ao caos.
  • Desejo e vulnerabilidade: A expressão de saudade e desejo no final do poema confere um tom de vulnerabilidade, revelando que, por trás da complexidade e da desordem, há um anseio por uma conexão que traga conforto e clareza.

4. Interpretação Geral

O poema pode ser entendido como uma reflexão sobre a dualidade da existência humana: a coexistência do mundo interior repleto de fantasias, contradições e desordem com a necessidade básica de afeto e proximidade. Ao mesmo tempo em que o poeta se depara com a complexidade de seus pensamentos e emoções, há uma clara reafirmação de que, independentemente dos conflitos internos, o desejo por um gesto simples de carinho (o abraço) permanece vital e transformador.

Em suma, a obra se destaca por sua capacidade de condensar em poucas palavras a tensão entre o caótico e o terno, o abstrato e o concreto, convidando o leitor a refletir sobre as inúmeras facetas da experiência humana.

Por favor, refaça a análise considerando quimera como o ser mitológico, A Quimera.

Ao reinterpretar o poema considerando “quimera” como a criatura mitológica — um ser híbrido e aterrador, composto por partes de diferentes animais — surgem novas camadas de significado:

1. A Quimera Mitológica como Símbolo

  • Hibridismo e Contradição:
    A quimera, na mitologia, é um monstro que reúne características díspares (como a cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente). Essa união de elementos contraditórios reforça a ideia de um ser impossível, que desafia as leis naturais e a ordem lógica. No poema, essa referência enfatiza a presença de uma força caótica, onde o racional e o irracional se entrelaçam.

  • Monstro e Fantasia:
    Ao evocar “monstro, fantasia, incoerência” logo após a menção à quimera, o autor intensifica a sensação de algo que, embora fantástico e mitológico, carrega uma carga de terror e incompreensão. Essa ambiguidade pode representar tanto a beleza quanto a monstruosidade do que é inatingível e desconhecido.

2. A Sobreposição do Mitológico com o Cotidiano

  • Elementos Naturais e o Absurdo:
    Ao listar termos como “planta, peixe, demência”, o poema amplia o espectro do híbrido para além do corpo da quimera, sugerindo uma transformação ou distorção dos elementos naturais. Essa justaposição de seres e estados de ser reforça a ideia de um mundo onde as fronteiras entre o real e o imaginário se confundem, assim como na composição da própria criatura mitológica.

  • O Anseio pelo Afeto:
    Em contraste com a imagem do monstro e do caos, o verso final “mas quem me dera / o abraço dela” traz à tona a necessidade humana de aconchego e contato afetivo. Essa ânsia por um abraço – algo profundamente humano e terno – ressalta o conflito entre a natureza selvagem e indomada (representada pela quimera) e o desejo de segurança e normalidade.

3. Interpretação Geral

A presença da quimera mitológica como ponto de partida do poema abre caminho para uma reflexão sobre a dualidade intrínseca à existência humana. Por um lado, temos o lado irracional, caótico e imprevisível — simbolizado pela mistura de elementos monstruosos e naturais –, e, por outro, a busca por amor e afeto, que representa a tentativa de se ancorar em uma realidade mais humana e compreensível.

Essa tensão sugere que, mesmo quando confrontados com aquilo que nos parece monstruoso ou incompreensível (seja em nossos pensamentos ou nas circunstâncias externas), a necessidade de conexão e calor humano permanece vital, servindo de contraponto e alento em meio à desordem.

Em suma, ao reinterpretar “quimera” como o ser mitológico, o poema se torna uma metáfora poderosa para a complexidade do ser humano — dividido entre a irracionalidade caótica e o desejo profundo de pertencimento e afeto.

Ficção?
Fique são.

Verdade, Erro
Engano, Imperfeição?
Diques são.

Dicção?
Ficção.

xxx

Seu poema brinca com a sonoridade e o significado das palavras de forma sucinta e enigmática. Aqui estão algumas análises possíveis:

1. Jogos Sonoros e Ambiguidade

O poema utiliza palavras curtas e diretas, explorando rimas internas e as semelhanças fonéticas entre "Ficção", "Fique são", "Diques são" e "Dicção". Isso cria um efeito de eco e um fluxo rítmico interessante.

2. Reflexão sobre Verdade e Ilusão

Os primeiros versos colocam conceitos opostos ou complementares: "Verdade, Erro" e "Engano, Imperfeição". Isso sugere um questionamento da realidade e da natureza da verdade. A conclusão com "Ficção" pode indicar que a realidade é construída ou que a linguagem molda nossa percepção do real.

3. Metáfora dos Diques

"Diques são" pode remeter à ideia de contenção, algo que limita ou regula um fluxo—talvez das palavras, do pensamento ou da verdade. Isso conecta-se com "Dicção", que remete à fala e à articulação da linguagem.

4. O Jogo com a Ficção

O fechamento do poema com "Ficção" sugere que tudo o que foi mencionado antes—verdade, erro, engano, dicção—pode ser apenas uma construção narrativa, reforçando a ideia de que a realidade pode ser uma ilusão linguística.

Conclusão

Seu poema é curto, mas denso em possibilidades de interpretação. Ele provoca a reflexão sobre os limites entre o real e o fictício, sobre como a linguagem molda a percepção, e usa o som das palavras para reforçar esses conceitos.





22/02/2025

Não sei

Não sei se me desejas,
Ou se só o desejo te anima.
Não sei se por mim tens excitação,
Ou se tu não queres morrer na mão.
Não sei se é por mim que teus pelos eriçam,
Ou se a tua eletricidade a tudo atiça.
Não sei se sou teu objeto de desejo,
Ou se simplesmente desejas...
Ah! Que seja!!
×××
Seu poema trabalha com a incerteza do desejo e a ambiguidade das intenções no campo do erotismo e da paixão. Ele questiona se o desejo do outro é genuinamente direcionado ao eu lírico ou se é apenas um reflexo de um impulso mais genérico e impessoal. O jogo entre dúvida e aceitação dá um tom de rendição cética e ao mesmo tempo resignada ao desejo.

Análise dos elementos principais:

1. Estrutura e Ritmo:

O poema segue uma estrutura repetitiva de questionamento ("Não sei se..."), criando um efeito de incerteza progressiva.

O último verso, "Ah! Que seja!!", rompe esse padrão e traz um desfecho súbito e resignado, sugerindo uma entrega ao desejo, independentemente de sua origem.



2. Temática e Dualidade:

O eu lírico oscila entre dois polos: a necessidade de ser desejado como indivíduo e a possibilidade de ser apenas um meio para o desejo do outro.

Essa dualidade aparece em pares de oposição:

"me desejas" x "só o desejo te anima",

"por mim tens excitação" x "não queres morrer na mão",

"por mim que teus pelos eriçam" x "eletricidade a tudo atiça".


Esses contrastes reforçam a insegurança sobre a autenticidade do desejo.



3. Erotismo e Existência:

O poema toca na ideia do desejo como uma força autônoma, que pode ser dirigida a qualquer um, ou seja, algo que não pertence ao objeto desejado, mas ao próprio desejo.

Há também uma leve ironia no verso "Ou se tu não queres morrer na mão.", que sugere um desejo movido pela necessidade física, e não pela atração específica.



4. Conclusão e Desfecho:

O final, "Ah! Que seja!!", marca uma mudança de tom. Depois de toda a incerteza, há uma aceitação pragmática: talvez o desejo não seja dirigido a quem se gostaria, mas ainda assim é desejo, e isso basta.

A pontuação dupla de exclamação reforça a sensação de entrega com um quê de alívio ou de resignação divertida.




Considerações finais:

O poema consegue expressar de forma leve, mas reflexiva, um dilema comum no desejo humano: a necessidade de se sentir especial versus a impessoalidade do desejo alheio. O desfecho sugere uma aceitação do prazer sem a necessidade de respostas absolutas, o que confere um tom mais libertador do que melancólico.

Gordo

Gordo, não se achava atraente.
Magra, por querê-lo, achava-a demente.
Emagreceu.
Ela se foi com outro.
Consola-se na patologia: era louca!!!

xxx

Seu poema tem um tom conciso, direto e irônico, abordando temas como autoimagem, desejo, rejeição e racionalização emocional. A construção narrativa, apesar de breve, apresenta uma progressão clara, com um desfecho que ironiza o processo psicológico do eu lírico.

Análise:

1. Contrastes e inversões:

"Gordo, não se achava atraente." → A frase inicial já estabelece uma questão de autoimagem negativa, sugerindo que a autopercepção pesa mais do que a realidade objetiva.

"Magra, por querê-lo, achava-a demente." → Aqui, a ironia se intensifica: ele duvida da sanidade dela por se interessar por ele, reforçando sua baixa autoestima e a incapacidade de aceitar o desejo do outro como legítimo.



2. Mudança e desilusão:

"Emagreceu." → Uma única palavra, seca e objetiva, que marca a mudança drástica. Ele fez aquilo que supostamente o tornaria mais desejável.

"Ela se foi com outro." → A inversão de expectativas: ao invés de a transformação trazer a felicidade esperada, o desfecho é de abandono.



3. Justificativa e ironia:

"Consola-se na patologia: era louca!!!" → O último verso sintetiza o autoengano do eu lírico. Para não lidar com a dor e a frustração, ele recorre a uma explicação que desqualifica o desejo dela, reafirmando seu julgamento inicial. O exagero da exclamação final ressalta a ironia da situação, sugerindo até um tom sarcástico.




Considerações:

O poema usa economia de palavras para criar um efeito potente e irônico, expondo as contradições da autoimagem e das dinâmicas de desejo. A mudança física não resulta na realização esperada, mas sim numa racionalização defensiva. A crítica à forma como projetamos nossas inseguranças nos outros é evidente e eficaz.

Colo, dá trabalho.
Perdas e ganhos.
Atalhos.

Nós, tecitura do ninho.
Tesoura amolada desfaz linho
E vinho.

Progressos, vestígios.
Novas formas, velhos vícios.
Vôos em precipícios.

xxx

Seu poema tem um tom conciso e reflexivo, com imagens que evocam um processo de transformação, perda e reconstrução. Há um jogo interessante entre suavidade e ruptura, continuidade e corte, sugerido tanto pelo campo semântico quanto pelo ritmo dos versos.

Análise:

1. Título e Primeiros Versos:

"Colo, dá trabalho." – Aqui, há uma tensão entre o acolhimento (colo) e o esforço necessário para mantê-lo (dá trabalho). A maternidade, a construção de laços ou mesmo o suporte emocional podem estar implícitos.

"Perdas e ganhos." – A dualidade do existir, o inevitável balanço entre o que se adquire e o que se perde.

"Atalhos." – Introduz a ideia de escolhas e caminhos mais rápidos, talvez ilusórios, o que pode dialogar com os versos seguintes.



2. Imagens do Ninho e da Tesoura:

"Nós, tecitura do ninho." – O coletivo (nós), a trama da vida e da proteção (ninho como lar, refúgio, aconchego).

"Tesoura amolada desfaz linho / e vinho." – O corte é brusco, destrói o tecido do ninho, e, surpreendentemente, também o vinho – símbolo de celebração, prazer ou sacralidade. Pode sugerir rupturas inesperadas, desfechos dolorosos ou transformações radicais.



3. Última Estrofe:

"Progressos, vestígios." – Avançar deixa rastros, indica que todo movimento carrega um passado.

"Novas formas, velhos vícios." – A luta entre inovação e padrões repetitivos. Mesmo quando algo muda, certos hábitos persistem.

"Voos em precipícios." – A imagem de um salto arriscado, talvez entre coragem e perigo, liberdade e queda. O voo pode sugerir emancipação, mas o precipício impõe uma incerteza dramática.




Considerações:

O poema é denso e aberto a múltiplas interpretações. Sua força vem do contraste entre aconchego e ruptura, progresso e resquícios do passado. A musicalidade discreta dos versos contribui para a fluidez da leitura, enquanto a construção imagética cria impacto.

Se a intenção foi transmitir a inevitabilidade das perdas no percurso da vida, a tensão entre o desejo de continuidade e as quebras bruscas, a sensação está bem captada.

Perguntou-me o literato

Perguntou-me o literato.
- Qual a diferença entre o erótico e o pornográfico?
- Meu amigo, entre o erótico e o pornográfico, 3 x bastam.

xxx

Seu texto é uma epigrama inteligente e sintética, que utiliza o duplo sentido e a brevidade para criar um impacto memorável. Vamos analisá-lo sob diferentes aspectos:
1. Estrutura e Estilo
O formato de diálogo é direto e eficaz, remetendo a um estilo aforístico, semelhante a anedotas filosóficas ou humorísticas.
A resposta é concisa e espirituosa, baseada em um jogo de palavras que sugere mais do que diz explicitamente.
2. O Jogo de Palavras
A chave do humor e da ironia do texto está na expressão "3 x bastam", que pode ser lida de duas maneiras:
1. Numericamente: A repetição da letra "x" sugere a classificação de conteúdo adulto (XXX), um código universal para pornografia.
2. Semântica e fonética: "Três vezes bastam" pode ser interpretado como um indicativo de quantidade ou intensidade, insinuando uma gradação entre o erótico e o pornográfico.
3. A Ironia da Resposta
O enigma da resposta deixa margem para interpretações subjetivas, tornando o texto mais provocativo e instigante.
O uso da linguagem cifrada faz com que o leitor tenha um momento de insight ao captar a referência, o que gera humor.
4. Temática e Filosofia
A distinção entre erotismo e pornografia já foi debatida por diversos pensadores (como Bataille e Sontag). Seu texto não apenas brinca com essa discussão, mas sintetiza de maneira irônica a diferença essencial: o erotismo sugere, a pornografia expõe.
Conclusão
Seu texto é uma pérola de humor sutil e provocação intelectual. A simplicidade da construção esconde uma resposta altamente sofisticada, que joga com cultura, duplo sentido e referência implícita. Excelente uso da brevidade e da ironia!


Graça concedida

Gaga, carcamana e pia, Dona Maria sonhava em ver o filho médico um dia.
Depois de mil Aves Maria visita o filho, todo dia, na ala da oncologia.

***

O texto Graça concedida é um miniconto ou poema extremamente conciso, mas carregado de ironia e dramaticidade. Ele brinca com a expectativa criada pelo desejo da personagem e o desfecho trágico, utilizando a sonoridade e a economia de palavras para causar impacto.

Análise Estrutural e Estilística

1. Forma e Ritmo

O texto é composto por dois períodos curtos, rimados e cadenciados, quase como uma quadra popular.

A repetição fonética ("Gaga, carcamana e pia", "mil Aves Maria") cria um ritmo musical e contribui para a oralidade e fluidez.

2. Linguagem e Estilo

A escolha das palavras remete a um tom coloquial e até arcaico.

"Gaga, carcamana e pia": Essa sequência de adjetivos constrói rapidamente o perfil da personagem. "Gaga" indica senilidade, "carcamana" pode sugerir uma descendência italiana ou uma pessoa muito velha e sofrida, e "pia" reforça sua religiosidade.

"Mil Aves Maria": Hipérbole que enfatiza sua fé e devoção.

"Visita o filho, todo dia, na ala da oncologia": Aqui ocorre a reviravolta. O desejo da mãe foi atendido, mas de maneira cruel – seu filho está na ala de um hospital como paciente, não como médico.

3. Temas e Impacto

Ironia trágica: A graça concedida foi uma distorção do sonho da mãe, reforçando o caráter impiedoso do destino.

Fé e impotência: A mãe rezou incansavelmente, mas o resultado foi contrário ao esperado.

Economia de palavras: O texto tem poucas frases, mas conta uma história inteira, o que o torna impactante.

Conclusão

Este é um excelente exemplo de como a brevidade pode amplificar a carga emocional e a ironia de uma narrativa. O choque entre o desejo e a realidade cria um efeito poderoso, e a musicalidade do texto reforça sua força expressiva.


Primeiras lembranças


Pediram-me para que eu descrevesse a minha primeira lembrança. Pensei que seria coisa fácil, mas as lembranças vêm embaralhadas, confusas. Lembro das férias ou do fim-de-semana na praia, na casa do catavento; lembro da areia branca, ou melhor, pérola; lembro do sol forte, claro, brilhante, ou melhor, deixando a atmosfera brilhante.

Lembro do meu fascínio pelo engenho, pela máquina do catavento, lembro de observar atentamente seus mecanismos, também sua beleza. Era um catavento destes antigos, prateado, tipo americano, o círculo de lâminas em cima de uma torre, também “de prata”, destas torres que lembram as de perfuração e busca de petróleo, também antigas, como antigas são as lembranças.

Também me lembro do primeiro dia em nossa nova casa, a da “Avenida Jovita Feitosa, 2290”. Com que orgulho eu “recitava” este endereço quando perguntado. Lembro do terraço amplo, com colunas retangulares, finas, em ladrilho amarelo, lembro de minha felicidade, de correr... Lembro de sair de um espaço apertado, a casa da vila onde morávamos, ou era da casa quase no centro da cidade? Destas que a porta da rua dá direto na calçada? Bom, enfim, a lembrança é de uma felicidade por poder correr, brincar, deslizar naquele terraço de cerâmica retangular vermelha. Lembro com nitidez de minha irmã, ainda em um andador, tentando me acompanhar, que graça!

Bom, o pedido foi da primeira lembrança, mas não sei o porquê, estas duas vêm juntas, sempre, talvez porque ambas façam referência à liberdade, ao vento, ao sol, à amplidão das areias da praia, à “amplidão” daquele terraço. Talvez a casa anterior me oprimisse, não sei; e isto não é mais primeiras lembranças, já é análise...

Ah! Antes de terminar só queria agregar à liberdade, ao sol, à amplidão do terraço e da praia, o fascínio pelo catavento, sua beleza, seu maquinário, estrutura e funcionamento. Vou ficando por aqui, tenho medo de sair da espontaneidade das lembranças de criança e começar a analisar no ofício de analista, de terapeuta.

Até mais...
******

O texto Primeiras lembranças apresenta uma escrita reflexiva e sensível sobre a memória, explorando como as recordações da infância não surgem de forma linear ou precisa, mas de maneira fragmentada e interconectada. A estrutura e o estilo do texto revelam um fluxo de consciência, caracterizado por associações livres e um tom intimista.

Análise do Conteúdo e Estilo

1. Narrador e Tom

O texto tem um narrador em primeira pessoa, que se dirige diretamente ao leitor, como se estivesse compartilhando um pensamento espontâneo. O uso de expressões como "Pediram-me para que eu descrevesse", "Bom, enfim" e "Vou ficando por aqui" reforça a oralidade e a naturalidade da narrativa.

O tom é nostálgico e introspectivo, oscilando entre a evocação das lembranças e a tentativa de compreendê-las.

2. Estrutura e Fluidez

A organização não é linear: o narrador tenta recuperar sua primeira lembrança, mas logo percebe que diferentes memórias vêm juntas, criando um encadeamento de cenas ligadas por sensações e emoções.

O uso de repetições ("também antigas, como antigas são as lembranças", "ao vento, ao sol, à amplidão") enfatiza a conexão entre os elementos e contribui para a musicalidade do texto.

3. Temas Centrais

Liberdade e Espaço: O contraste entre a casa anterior (possivelmente apertada e limitadora) e os espaços amplos da praia e do terraço sugere que a liberdade é um elemento essencial na lembrança.

Fascínio pela mecânica: O catavento, descrito com detalhes, representa tanto um objeto de admiração infantil quanto um símbolo de movimento e transformação.

A memória e a subjetividade: O texto reconhece as limitações da memória, a forma como lembranças se misturam e como o próprio ato de recordar pode ser influenciado pela interpretação adulta.

4. Estilo e Recursos Linguísticos

Descrições sensoriais: O autor recorre a cores e texturas ("areia branca, ou melhor, pérola", "terraço de cerâmica retangular vermelha") para dar vida às cenas.

Uso de parênteses e reticências: Esses recursos reforçam a fluidez do pensamento e a hesitação do narrador diante das lacunas da memória.

Interação com o leitor: A linguagem acessível e a inclusão de reflexões meta-textuais ("isto não é mais primeiras lembranças, já é análise") criam proximidade com quem lê.

Conclusão

O texto é uma belíssima reflexão sobre a infância e a memória, unindo espontaneidade e lirismo. A forma como as lembranças emergem, carregadas de sensações e associações, torna a leitura envolvente. Além disso, a consciência do narrador sobre o risco de transformar a experiência em análise formal adiciona uma camada metalinguística interessante.

Lucífuga reflexão

Cabisbaixo,
viu a lua
na poça da rua.
Sobre o que mais viu,
refletiu.
Vira-lata a sorveu,
misturada ao reflexo seu.
‘O mesmo cão que para a lua uiva,
a lambe na água ruiva’.
***
Seu poema é breve, mas denso em significado, utilizando imagens minimalistas e bem trabalhadas para evocar reflexões sobre a realidade, o reflexo e a identidade. Eis alguns pontos de análise:

Forma e Estrutura

O poema é conciso, com versos curtos e um ritmo cadenciado que favorece a fluidez da leitura.

A quebra de versos contribui para a atmosfera introspectiva e contemplativa.

O uso de rimas internas e aliterações discretas (como "viu", "viu", "virá-lata", "viu", "refletiu") cria uma sonoridade agradável e coesa.


Imagens e Simbolismo

A lua refletida na poça simboliza um duplo: o real e sua imagem ilusória, uma questão filosófica antiga.

O cachorro, figura do instinto, primeiro percebe e depois sorve a lua dissolvida na água, confundindo sua realidade. Esse gesto pode ser lido como a fusão entre o eu e o outro, entre o desejo e sua impossibilidade.

A última estrofe apresenta uma máxima quase proverbial, ressoando ideias de destino e repetição: o mesmo cão que uiva para a lua a lambe no reflexo, o que pode sugerir um ciclo de desejo e frustração, de busca e engano.


Possíveis Leituras Filosóficas e Psicológicas

O poema dialoga com temas de ilusão e realidade (semelhante ao pensamento budista ou platônico).

Do ponto de vista psicanalítico, poderia remeter ao Eu e o Outro, à relação entre desejo e projeção. O cão quer a lua, mas só pode tocá-la na poça – assim como o sujeito muitas vezes busca algo inalcançável e, no fim, se contenta com uma ilusão.

Também se pode ler a imagem como uma reflexão sobre o instante e sua dissolução: tudo o que percebemos está sempre sujeito a se perder ou se transformar.


Conclusão

Seu poema tem uma forte carga simbólica e um refinamento na economia das palavras. A escolha das imagens e a concisão do texto fazem dele um pequeno haikai filosófico, capaz de provocar múltiplas interpretações.