Pediram-me
para que eu descrevesse a minha primeira lembrança. Pensei que seria coisa
fácil, mas as lembranças vêm embaralhadas, confusas. Lembro das férias ou do
fim-de-semana na praia, na casa do catavento; lembro da areia branca, ou
melhor, pérola; lembro do sol forte, claro, brilhante, ou melhor, deixando a
atmosfera brilhante.
Lembro
do meu fascínio pelo engenho, pela máquina do catavento, lembro de observar
atentamente seus mecanismos, também sua beleza. Era um catavento destes
antigos, prateado, tipo americano, o círculo de lâminas em cima de uma torre,
também “de prata”, destas torres que lembram as de perfuração e busca de
petróleo, também antigas, como antigas são as lembranças.
Também
me lembro do primeiro dia em nossa nova casa, a da “Avenida Jovita Feitosa,
2290”. Com que orgulho eu “recitava” este endereço quando perguntado. Lembro do
terraço amplo, com colunas retangulares, finas, em ladrilho amarelo, lembro de
minha felicidade, de correr... Lembro de sair de um espaço apertado, a casa da
vila onde morávamos, ou era da casa quase no centro da cidade? Destas que a
porta da rua dá direto na calçada? Bom, enfim, a lembrança é de uma felicidade
por poder correr, brincar, deslizar naquele terraço de cerâmica retangular
vermelha. Lembro com nitidez de minha irmã, ainda em um andador, tentando me
acompanhar, que graça!
Bom,
o pedido foi da primeira lembrança, mas não sei o porquê, estas duas vêm
juntas, sempre, talvez porque ambas façam referência à liberdade, ao vento, ao
sol, à amplidão das areias da praia, à “amplidão” daquele terraço. Talvez a
casa anterior me oprimisse, não sei; e isto não é mais primeiras lembranças, já
é análise...
Ah!
Antes de terminar só queria agregar à liberdade, ao sol, à amplidão do terraço
e da praia, o fascínio pelo catavento, sua beleza, seu maquinário, estrutura e
funcionamento. Vou ficando por aqui, tenho medo de sair da espontaneidade das
lembranças de criança e começar a analisar no ofício de analista, de terapeuta.
Até
mais...
******
O texto Primeiras lembranças apresenta uma escrita reflexiva e sensível sobre a memória, explorando como as recordações da infância não surgem de forma linear ou precisa, mas de maneira fragmentada e interconectada. A estrutura e o estilo do texto revelam um fluxo de consciência, caracterizado por associações livres e um tom intimista.
Análise do Conteúdo e Estilo
1. Narrador e Tom
O texto tem um narrador em primeira pessoa, que se dirige diretamente ao leitor, como se estivesse compartilhando um pensamento espontâneo. O uso de expressões como "Pediram-me para que eu descrevesse", "Bom, enfim" e "Vou ficando por aqui" reforça a oralidade e a naturalidade da narrativa.
O tom é nostálgico e introspectivo, oscilando entre a evocação das lembranças e a tentativa de compreendê-las.
2. Estrutura e Fluidez
A organização não é linear: o narrador tenta recuperar sua primeira lembrança, mas logo percebe que diferentes memórias vêm juntas, criando um encadeamento de cenas ligadas por sensações e emoções.
O uso de repetições ("também antigas, como antigas são as lembranças", "ao vento, ao sol, à amplidão") enfatiza a conexão entre os elementos e contribui para a musicalidade do texto.
3. Temas Centrais
Liberdade e Espaço: O contraste entre a casa anterior (possivelmente apertada e limitadora) e os espaços amplos da praia e do terraço sugere que a liberdade é um elemento essencial na lembrança.
Fascínio pela mecânica: O catavento, descrito com detalhes, representa tanto um objeto de admiração infantil quanto um símbolo de movimento e transformação.
A memória e a subjetividade: O texto reconhece as limitações da memória, a forma como lembranças se misturam e como o próprio ato de recordar pode ser influenciado pela interpretação adulta.
4. Estilo e Recursos Linguísticos
Descrições sensoriais: O autor recorre a cores e texturas ("areia branca, ou melhor, pérola", "terraço de cerâmica retangular vermelha") para dar vida às cenas.
Uso de parênteses e reticências: Esses recursos reforçam a fluidez do pensamento e a hesitação do narrador diante das lacunas da memória.
Interação com o leitor: A linguagem acessível e a inclusão de reflexões meta-textuais ("isto não é mais primeiras lembranças, já é análise") criam proximidade com quem lê.
Conclusão
O texto é uma belíssima reflexão sobre a infância e a memória, unindo espontaneidade e lirismo. A forma como as lembranças emergem, carregadas de sensações e associações, torna a leitura envolvente. Além disso, a consciência do narrador sobre o risco de transformar a experiência em análise formal adiciona uma camada metalinguística interessante.
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