16/08/2025

Devoro




Ora...
Você foi embora.
agora?!
Só,
Sigo vida afora.
E a meus próprios afetos
Devoro.

ANÁLISE

🔹 Análise poética

  • Título: “Devoro” já sugere uma ação visceral, quase instintiva, ligada à sobrevivência e ao excesso dos afetos. O verbo no presente dá força imediata, como algo inevitável.

  • Estrutura: O poema é curto, direto, marcado pela quebra abrupta dos versos, o que espelha o rompimento da relação e o impacto do abandono.

  • Tonalidade: Entre o lamento e a autodefesa. O “Só” isolado em um verso tem grande efeito visual e sonoro, condensando a solidão.

  • Imagem final: “Devoro” traz a ideia de autofagia afetiva — sem o outro, resta consumir a si mesmo. É um fecho forte, quase um nó trágico.


🔹 Sugestão de versão levemente lapidada (sem alterar o núcleo do poema)

Devoro
Ora...
Você foi embora.
E agora?!
Só.
Sigo vida afora.
De meus próprios afetos,
Devoro.

Aqui, mantive a intensidade, mas acrescentei uma pontuação mais cadenciada para ressaltar a dramaticidade e o eco do silêncio.


🔹 Possível leitura interpretativa

O poema poderia figurar como parte de uma série de microtextos existenciais, onde cada peça concentra em poucos versos um universo emocional. Ele toca na solidão, na perda, mas também na força paradoxal de transformar a falta em alimento — ainda que doloroso.

Um critério apenas



Como seria bom poder avaliar as pessoas pela poesia que elas já leram, ou melhor, pela poesia que elas já permitiram lhes tocar. Ah! Que cada pessoa valesse pela sua sensibilidade para com os mistérios encerrados em si mesmo; para com o enigma e a banalidade dos outros; para com a silenciosa transcendência. Ah! E a capacidade de ganhar dinheiro? Isso também é importante, assim, também seria um critério na avaliação. Um critério, apenas.

ANÁLISE

Teikan, esse pequeno texto tem uma força poética e, ao mesmo tempo, reflexiva. A seguir, uma análise em três dimensões: estilo, conteúdo e efeito filosófico-existencial.


1. Estilo

O texto se constrói em tom meditativo, com frases curtas, intercaladas por interjeições ("Ah!") que evocam uma cadência quase litúrgica ou confessional. O ritmo oscila entre a leveza lírica (quando fala da poesia, do mistério, da transcendência) e a ironia sutil (quando insere o dinheiro como critério de avaliação).
Há também o uso de anáforas ("para com") que dão unidade e eco, reforçando a ideia de sensibilidade como critério de valor.


2. Conteúdo

O texto propõe uma inversão de perspectiva: avaliar o valor de alguém não por padrões convencionais (riqueza, produtividade, status), mas pela capacidade de ser tocado pela poesia, ou seja, pela abertura à experiência estética, ao enigma e à transcendência.

Três camadas de sensibilidade são destacadas:

  1. Para consigo mesmo – mistérios interiores.

  2. Para com os outros – tanto o enigma quanto a banalidade.

  3. Para com o transcendente – aquilo que está além da palavra.

Na sequência, há a volta irônica à realidade: o dinheiro também é critério. Mas o "apenas um critério" minimiza o peso absoluto da economia, sem negá-la.


3. Efeito filosófico-existencial

O texto oscila entre a utopia e a crítica social. Ele sugere que o mundo seria mais justo (ou ao menos mais belo) se a sensibilidade fosse a medida do valor humano.
A inserção do dinheiro, no entanto, impede que o texto caia numa ingenuidade romântica: reconhece que vivemos em uma sociedade que não pode prescindir de critérios materiais. Mas o dinheiro, no fundo, é relativizado — rebaixado a “um critério, apenas”, contraposto ao valor supremo da poesia e da sensibilidade.


Em suma:
É um texto que articula lirismo e crítica, com leve ironia. Sugere um critério de humanidade baseado naquilo que nos torna mais finos, vulneráveis e abertos — a poesia —, sem negar que a vida prática exige outro tipo de medida. Ele poderia muito bem servir como um prefácio para reflexões sobre ética, estética e existência.

11/03/2025

Teso, enterneço



Teso, choro de medo
Penso: que jeito?
E enterneço

xxx

Seu poema é extremamente conciso, mas carrega uma carga emocional intensa. A economia de palavras intensifica o impacto de cada verso, criando uma experiência quase instantânea de angústia e transformação.

1. Primeiro verso: "Teso, choro de medo"

A palavra teso transmite tensão, rigidez, como um corpo enrijecido pelo medo.

O choro de medo adiciona uma dimensão emocional, tornando a tensão não apenas física, mas também psicológica.

2. Segundo verso: "Penso: que jeito?"

A reflexão aparece como uma tentativa de saída ou compreensão da situação.

A interrogação interna reforça a incerteza e o impasse, como se o eu lírico buscasse uma solução que parece não existir.

3. Terceiro verso: "E enterneço"

O desfecho surpreende: em vez de permanecer no medo e na dúvida, há uma transformação.

Enternecer-se sugere suavização, empatia, uma abertura para o afeto.

Pode indicar que o medo e a rigidez se dissolvem na ternura, talvez na aceitação ou em um gesto de compaixão.

A estrutura do poema cria uma progressão emocional: do medo rígido à dúvida e, finalmente, ao acolhimento. Essa jornada, embora breve, é profunda e universal, tocando em algo essencialmente humano: a capacidade de transformação emocional diante do medo.

Meus loucos


A louca da minha rua: nua.
A louca da minha infância: infame.
A louca inflamada: mal-amada.
A louca mansa: dança.

A louca dos nervos de aço:
o louco de Picasso.

O louco mouco: moço.
O louco rouco: ouço.
O louco belo: terno.
O louco da navalha: não falha.

A louca de Picasso:
o louco dos nervos de aço.

xxx

Seu poema apresenta um jogo sonoro e semântico interessante, explorando variações da palavra "louco/louca" em diferentes contextos e estados. Há um forte uso de aliterações e assonâncias, criando um ritmo quase musical. Além disso, a estrutura sintética e fragmentada remete a um efeito de aforismo ou de pensamento lapidado, como se cada verso condensasse um universo simbólico próprio.

A repetição e inversão dos versos finais reforça um efeito circular, quase obsessivo, que pode sugerir a própria repetição do delírio ou da loucura como um ciclo. A menção a Picasso e seus loucos remete ao expressionismo e ao cubismo, onde a fragmentação da forma e da percepção é um elemento central. Assim, o poema não apenas descreve figuras loucas, mas também brinca com a própria estrutura da linguagem, tornando-a, de certo modo, "louca" também.

Há ainda uma sugestão de contrastes: loucura e arte, loucura e força ("nervos de aço"), loucura e ternura ("terno"), loucura e perigo ("navalha"). O poema, portanto, pode ser lido tanto como um exercício lúdico de sonoridade quanto como uma reflexão simbólica sobre os múltiplos aspectos da loucura na vida e na cultura.

08/03/2025

Freud explica, explica?

Explica,
por favor, explica
essa rima
em mim.

Ou

Essa falta de rima,
a lacuna,
a poesia,
enfim...

Ou

Vida e morte,
morte e vida.
Esse ritmo.
Assim...

Ou

Escuta
por favor, escuta
esse canto
obsessivo em mim.

xxx

O poema Freud explica, explica? brinca com a dúvida e a ironia diante da psicanálise como um discurso que busca dar sentido ao que escapa à compreensão imediata. A repetição do verbo “explica” já carrega um tom ansioso, quase uma exigência, mas a própria estrutura do poema parece resistir à explicação definitiva.

Análise:
1. O jogo da explicação e da falta dela
O título já sugere uma ambiguidade: Freud realmente explica tudo? Ou há algo na subjetividade humana que sempre escapa à interpretação?
A repetição inicial "Explica, / por favor, explica" reforça essa tensão entre a necessidade de compreender e a possibilidade de que a compreensão seja sempre parcial, inacabada.

2. A rima e sua ausência como metáfora psíquica
O segundo bloco apresenta uma dicotomia interessante: "Essa rima / em mim." e "Essa falta de rima, / a lacuna, / a poesia, / enfim..."
Aqui, a rima pode ser entendida como uma sensação de ordem, algo que faz sentido na estrutura psíquica. Mas sua ausência – a lacuna – é igualmente significativa, remetendo à incompletude, ao desejo, àquilo que escapa.
A presença da palavra "poesia" nesse contexto sugere que tanto a estrutura ordenada (rima) quanto o vazio e o inesperado (falta de rima) fazem parte da experiência humana e da criação artística.

3. Vida, morte e o ritmo da existência
O terceiro bloco "Vida e morte, / morte e vida. / Esse ritmo. / Assim..." toca em um tema fundamental da psicanálise freudiana: o conflito entre Eros (pulsão de vida) e Tânatos (pulsão de morte).
O movimento circular das palavras reforça essa ideia de um ciclo contínuo, onde vida e morte se alternam sem resolução final.
O termo "ritmo" sugere que esse ciclo tem uma cadência própria, inevitável, que rege a existência de maneira impessoal e implacável.

4. A obsessão e a escuta psicanalítica
O último bloco muda de tom, voltando ao pedido quase desesperado do início: "Escuta / por favor, escuta" – um apelo direto à escuta analítica, à necessidade de ser ouvido.
A expressão "esse canto / obsessivo em mim." remete ao sintoma neurótico, à repetição compulsiva de um sofrimento que insiste em retornar. Há uma musicalidade implícita na palavra "canto", que pode ser lida tanto como expressão artística quanto como um lamento repetitivo.
A obsessão, na psicanálise, está ligada à tentativa de domar a angústia por meio da repetição, como se o sujeito estivesse preso a um loop psíquico.

Considerações finais:
O poema, com sua estrutura fragmentada e seu tom ao mesmo tempo lúdico e angustiado, dialoga diretamente com a psicanálise freudiana. Ele sugere que Freud pode até explicar muita coisa, mas talvez nunca explique tudo – especialmente aquilo que escapa, a lacuna, a falta, o desejo. A alternância entre explicação e mistério, ordem e desordem, rima e ausência de rima, reflete a própria estrutura do inconsciente: feita de significantes em movimento, de repetições e de hiatos que nunca se fecham completamente.
No fim, talvez a questão não seja apenas explicar, mas escutar – e isso Freud, de fato, ensinou a fazer.

Tempos

Tempo antigo, andas comigo.
Tempo moderno, ainda te espero.
Tempo atual, és real?

De tempos em tempos,
mudam-se os tempos,
velozes... lentos.

De momento, só sinto o tempo.
E vejo relógios, riscos no cimento,
instrumentos...

Tempo:
memórias, esquecimentos.
Sedimentos.

xxx

O poema reflete sobre a natureza do tempo, sua passagem e sua relação com a experiência humana. Ele trabalha com um jogo sutil entre diferentes temporalidades e a percepção subjetiva do tempo, evocando tanto o ritmo acelerado da modernidade quanto a permanência das marcas do passado.

Análise:
1. Estrutura e musicalidade
O poema tem um ritmo fluido e reflexivo, alternando versos curtos e longos, o que reforça a sensação de oscilação entre o tempo que passa rápido e o tempo que se arrasta.

O uso de repetições ("tempo antigo" / "tempo moderno" / "tempo atual") e variações sutis sugere um ciclo contínuo de mudanças e permanências.

2. Percepção subjetiva do tempo
"Tempo antigo, andas comigo." → O passado é uma presença constante, algo que acompanha o sujeito, sugerindo memórias vívidas.

"Tempo moderno, ainda te espero." → Aqui há um deslocamento: o tempo moderno parece uma promessa ainda não cumprida, talvez uma referência à expectativa de progresso e mudanças.

"Tempo atual, és real?" → Surge uma dúvida existencial: no mundo acelerado e fluido de hoje, conseguimos realmente viver o presente ou ele se dissolve antes de ser plenamente experimentado?

3. O caráter cíclico do tempo
"De tempos em tempos, / mudam-se os tempos, / velozes... lentos."

Essa variação da velocidade do tempo é subjetiva: há momentos de rapidez e momentos de lentidão. Isso remete à relatividade da experiência temporal, influenciada pelas emoções e pelo contexto histórico.

4. Os vestígios do tempo
"De momento, só sinto o tempo. / E vejo relógios, riscos no cimento, / instrumentos..."

Aqui, o tempo é percebido através de suas marcas no mundo físico: relógios (medição objetiva), riscos no cimento (erosão, ação do tempo sobre a matéria), instrumentos (formas de controle e registro do tempo).

O tempo não é apenas algo abstrato, mas algo que se manifesta em vestígios concretos.

5. A relação entre tempo, memória e esquecimento
"Tempo: / memórias, esquecimentos. / Sedimentos."

O tempo é aquilo que guarda e apaga. Ele acumula lembranças (memórias), mas também as dissolve (esquecimentos).

A palavra sedimentos é muito sugestiva: remete a camadas que se depositam ao longo do tempo, formando uma história, um passado, uma identidade.

Considerações finais:
O poema, apesar de sua aparente simplicidade, carrega uma reflexão profunda sobre o tempo, sua passagem e seus efeitos. Ele equilibra a subjetividade da experiência com elementos concretos que simbolizam o tempo (relógios, riscos, sedimentos). A dúvida sobre a realidade do tempo atual sugere uma crítica à aceleração da modernidade e à dificuldade de viver plenamente o presente.

O efeito geral é de contemplação e questionamento, fazendo o leitor sentir a fluidez do tempo ao mesmo tempo em que percebe suas marcas no mundo e em si mesmo.

Solidão


Solidão:
às vezes oásis,
às vezes sertão.

ANÁLISE
Esse pequeno poema tem uma síntese poderosa — a solidão como espaço ambíguo: ora refúgio e frescor (oásis), ora aridez e vazio (sertão).



Ângulos



Angústia
Angina
Ambas pectoris

xxx

O poema é extremamente conciso, composto por apenas três palavras que se organizam em uma relação de ressonância sonora e semântica. Sua força está na condensação do significado e na evocação de múltiplas camadas de sentido.

Análise:

1. Sonoridade e estrutura minimalista
As palavras iniciam-se com a vogal "A", criando um ritmo fonético que unifica o poema.

O movimento do poema é descendente, partindo de um estado emocional (Angústia), passando para um estado físico (Angina), e culminando em uma localização anatômica (Ambas pectoris).

2. Diálogo entre o psicológico e o somático
Angústia é um termo profundamente psicanalítico e filosófico, relacionado ao sofrimento psíquico, à incerteza e ao mal-estar existencial.

Angina já pertence ao campo médico e remete a uma dor torácica associada ao coração, uma condição clínica que pode estar relacionada ao estresse e à ansiedade.

Ambas pectoris sugere a fusão desses dois estados na região do peito, enfatizando que o sofrimento emocional e o físico são indissociáveis.

3. Ressonância psicanalítica
A psicanálise frequentemente trata da somatização da angústia, ou seja, da maneira como os conflitos psíquicos se expressam no corpo. O poema sintetiza esse conceito com extrema economia verbal, sugerindo que a angústia pode se manifestar fisicamente como dor torácica (angina).

Conclusão:
O poema é um exemplo de síntese poética bem-sucedida. Ele trabalha com a interseção entre mente e corpo, psicanálise e medicina, emoção e fisiologia, tudo isso em apenas três palavras. Sua potência reside na sugestão, na ressonância semântica e na capacidade de abrir um espaço interpretativo vasto a partir de um mínimo de linguagem.

Haveria alguma ressonância com o Zen Budismo? Pensei na interconexão, no Interser...

Sim, o poema pode ser lido à luz do Zen Budismo, especialmente dentro da ideia de interconexão (interser), um conceito fundamental na visão budista da realidade. Algumas possíveis ressonâncias:

1. A unidade entre corpo e mente
No Zen, não há uma separação essencial entre o físico e o mental. A dor emocional (Angústia) e a dor física (Angina) são expressões de uma mesma realidade interdependente. No Ocidente, muitas vezes tratamos essas dimensões separadamente, mas no Zen a mente não pode ser dissociada do corpo – assim como a respiração não pode ser separada do ar.

2. A interdependência dos fenômenos
"Ambas pectoris" pode ser lido como um reconhecimento de que angústia e angina compartilham um mesmo lugar: o peito, o centro vital. Isso lembra a ideia budista de que nada existe isoladamente; a dor emocional e a dor física não são realidades separadas, mas aspectos interligados da existência.

3. A experiência direta do sofrimento
O Zen ensina a não fugir do sofrimento, mas a encará-lo diretamente, com plena atenção (shikantaza, o simples sentar-se). O poema não tenta explicar ou racionalizar a angústia e a angina – apenas as apresenta, nuas e diretas, como são. Essa é a abordagem zen: ver as coisas exatamente como são, sem adornos.

4. O vazio e a impermanência
No Zen, todas as coisas são impermanentes e inter-relacionadas, o que se aproxima da ideia budista de śūnyatā (vacuidade). A angústia não existe em si mesma, nem a angina; ambas surgem a partir de causas e condições. O poema, ao apresentar essas palavras sem uma explicação explícita, sugere essa vacuidade: elas só fazem sentido dentro de uma rede de relações, dentro do próprio leitor que as experimenta.

Conclusão:
O poema pode ser lido como uma expressão concisa da interdependência entre mente e corpo, sofrimento emocional e físico, linguagem e experiência direta. Sua simplicidade e sua forma aberta refletem a estética zen: poucas palavras, vasto espaço interpretativo. Como um koan, ele não dá respostas – apenas aponta para algo que precisa ser vivido para ser compreendido.




Vasily Kandinsky

Somos todos quadrados
com círculos concêntricos.

Forma, cor, movimento.
Figura e abstração.

No mais, o furo no muro
e o murmúrio...
sustentação.

xxx

O poema Vasily Kandinsky remete diretamente à obra do pintor russo, um dos pioneiros da arte abstrata. A concisão dos versos e a escolha das palavras refletem o caráter essencialista da estética de Kandinsky, que explorava a expressividade da forma, da cor e do movimento, rompendo com a representação figurativa tradicional.

Análise:

1. Geometria e abstração

"Somos todos quadrados / com círculos concêntricos."
A imagem geométrica evoca um dos elementos característicos da arte de Kandinsky: a interação entre formas básicas, especialmente quadrados e círculos, que aparecem em sua obra de maneira simbólica e estrutural. O verso sugere também uma metáfora sobre a condição humana: um jogo de limites e centros, estrutura e fluidez, ordem e expressão.



2. Elementos da pintura abstrata

"Forma, cor, movimento. / Figura e abstração."
Esses versos funcionam como uma espécie de síntese dos princípios kandinskianos. Ele via a arte como algo dotado de vida própria, em que forma, cor e movimento não eram apenas representações do mundo, mas entidades com uma energia intrínseca. A justaposição de "figura e abstração" marca o trânsito entre os modos de representação, remetendo à evolução do próprio artista.



3. O vazio como sustentação

"No mais, o furo no muro / e o murmúrio... / sustentação."
Aqui, o poema alcança um nível mais enigmático e filosófico. O "furo no muro" pode simbolizar uma abertura para novas possibilidades, um rompimento com o convencional (assim como a arte abstrata rompeu com o figurativo). O "murmúrio" pode sugerir a ressonância sutil da arte no mundo, um eco que se sustenta mesmo na ausência de formas reconhecíveis. A palavra "sustentação" finaliza o poema de maneira ambígua, sugerindo que a força da arte (e da vida) pode estar justamente nesse espaço indefinido, nesse intervalo entre o visível e o invisível.




Considerações finais:

O poema é breve, mas carrega densidade conceitual e uma relação íntima com a estética de Kandinsky. Ele capta a essência da abstração geométrica e da expressividade pictórica do artista, transformando-a em uma experiência poética. O uso econômico das palavras e a disposição dos versos também criam um ritmo visual que dialoga com a própria composição das obras de Kandinsky.


07/03/2025

Caninhos


Perdido
Desconheço o Caminho
Lido
Com a falta de ninho
Fico
A pensar sozinho
Digo
Só me resta inventar Caninhos

xxx

O poema Perdido, com o título Caninhos, apresenta uma estrutura concisa e cadenciada, marcada pela alternância entre versos principais e complementares. O ritmo é reforçado pelo paralelismo sintático e pelo uso de verbos no presente, que conferem um tom imediato e reflexivo.

Análise Estrutural e Sonora

O poema se organiza em pares de versos, nos quais o primeiro estabelece uma situação e o segundo funciona como um eco conciso, quase como uma resposta interna. A escolha dos verbos (Desconheço, Lido, Fico, Digo) cria um fluxo narrativo que sugere uma progressão de estados psicológicos: primeiro a incerteza (Desconheço o Caminho), depois o esforço de enfrentamento (Lido), a solidão reflexiva (Fico) e, por fim, a verbalização da solução possível (Digo).

O jogo sonoro é sutil, mas eficaz. Há rimas internas (Caminho/ninho/sozinho/Caninhos), que criam coesão e musicalidade. Além disso, a repetição do sufixo -inho remete a algo pequeno, delicado ou até infantil, o que pode intensificar a sensação de fragilidade ou de tentativa de encontrar saídas improvisadas.

Sentido e Simbolismo

O eu lírico expressa uma sensação de perda e desorientação (Desconheço o Caminho), associada à falta de um espaço seguro ou pertencimento (falta de ninho). A progressão emocional culmina na necessidade de invenção (Só me resta inventar Caninhos), sugerindo um processo de criação como forma de lidar com a incerteza.

O título Caninhos remete foneticamente a "caminhos", mas no diminutivo, o que pode indicar percursos menores, improvisados ou singelos. Além disso, o título evoca uma possível alusão a cães (caninos), o que poderia sugerir tanto a busca instintiva por direção quanto uma metáfora para fidelidade, companhia ou farejamento de novas trilhas.

Interpretação Global

O poema transmite uma sensação de deslocamento existencial e uma resposta criativa a essa condição. O eu lírico, diante da perda e da solidão, transforma a necessidade em invenção, convertendo a falta de caminhos convencionais em "Caninhos" próprios. Essa solução pode ser lida como um gesto de resistência, adaptação ou mesmo um ato poético de recriação do próprio destino.

Caso deseje intensificar o efeito do poema, uma possibilidade seria explorar ainda mais a ambiguidade do título ou reforçar o tom sensorial da experiência de estar perdido e criar novos rumos. Mas, como está, o poema já apresenta uma estrutura coesa, uma sonoridade marcante e um jogo de significados aberto e sugestivo.

05/03/2025

Psiquê


Borboletas:
Atos, 
falas
e letras...
Terapêuticas

xxx

O poema, intitulado Psique, é curto, mas profundamente simbólico. O uso da palavra "Borboletas" remete diretamente ao mito de Psiquê, cujo nome em grego significa tanto "alma" quanto "borboleta", estabelecendo uma conexão entre transformação, fragilidade e autoconhecimento.

A sequência de palavras — "Atos, falas e letras" — sugere elementos fundamentais da experiência humana e da comunicação. São também aspectos essenciais da psicoterapia: os atos do paciente e do terapeuta, as falas que emergem no setting terapêutico e as letras, que podem remeter tanto à escrita quanto à interpretação da história pessoal.

O último verso, "Terapêuticas", amarra o significado, indicando que esses elementos — ações, palavras e registros simbólicos — possuem um efeito de cura ou transformação. Assim como a borboleta passa por um processo de metamorfose, a psique também se transforma ao longo do processo terapêutico.

O poema, embora minimalista, é altamente sugestivo e evoca a complexidade da experiência psicológica e do processo de cura psíquica.







Haicai 05


Presente esquisito.
O gentil noivo lhe presenteia
um belo pássaro ferido.

xxx

O pequeno poema apresenta um paradoxo intrigante entre a intenção e o gesto. O "gentil noivo" sugere alguém afetuoso, cuidadoso, mas o presente que oferece — "um belo pássaro ferido" — carrega uma contradição: beleza e fragilidade coexistem com a dor.

A imagem do pássaro ferido pode simbolizar diversas coisas: um amor que chega já marcado pelo sofrimento, um presente que exige cuidados e atenção, ou mesmo uma metáfora para a vulnerabilidade inerente às relações humanas. O noivo, ao oferecer algo assim, pode ser visto como ingênuo, cruel ou talvez simbólico de alguém que traz consigo feridas emocionais.

A brevidade e o impacto do poema reforçam seu caráter enigmático e aberto a interpretações.

Humanidades



Um belo dia
meu filho me perguntou
como eu imaginava
a face de Deus

Depois de passado o susto
pensei
ponderei
me esforcei

E respondi: "não sei"
Ele me sorriu
e aliviado me correspondeu:
"Nem eu"

Xxx

Seu poema é delicado e profundo, explorando com simplicidade uma questão filosófica e existencial: a imagem de Deus. Aqui estão alguns aspectos de análise:

1. Espontaneidade e Reflexão – O poema começa com um tom casual e cotidiano ("Um belo dia") e rapidamente nos conduz a um questionamento fundamental, sugerindo que grandes questões surgem de maneira inesperada e desarmada.


2. O Impacto da Pergunta – A reação inicial do eu lírico ("Depois de passado o susto") revela que a questão do filho o surpreende e exige um esforço genuíno de reflexão. O uso dos verbos "pensei, ponderei, me esforcei" enfatiza a tentativa de encontrar uma resposta satisfatória, sugerindo que a busca por Deus é um processo interno e intenso.


3. A Honestidade da Resposta – A simplicidade do "não sei" tem um impacto significativo. Em vez de apresentar uma certeza ou uma crença dogmática, o eu lírico opta por admitir a dúvida, reconhecendo os limites da compreensão humana sobre o divino.


4. O Alívio do Filho – O desfecho traz uma inversão tocante: em vez de frustração, o filho sente alívio ao perceber que a dúvida é compartilhada. O "Nem eu" indica que a incerteza não é um problema, mas algo humano e natural.


5. Diálogo e Existência – O poema destaca a relação entre pai e filho como um espaço de troca genuína, onde a incerteza não separa, mas une. A ausência de uma resposta definitiva sobre Deus não gera angústia, mas sim um momento de comunhão e entendimento mútuo.



No geral, o poema aborda a questão teológica de forma acessível e sensível, valorizando mais a honestidade e o compartilhamento da dúvida do que a busca por certezas.

Ivo

depressivo

de
press
-ivo

modo de ser
de estar
de se relacionar

imperativo

ímpar
sem-par
sem igual

único

unicolor
unicorne
unicursal

tal-e-qual
semelhante
igual

ao depressivo

xxx

Seu poema é uma exploração linguística e conceitual da depressão, utilizando jogos de palavras para desconstruir e reconstruir significados. Aqui estão alguns pontos de análise:

1. Fragmentação e Significado – A separação de "depressivo" em "de / press / -ivo" sugere um desmembramento da palavra para revelar múltiplas camadas de sentido. "Press" pode remeter à pressão, peso ou opressão, enquanto "-ivo" indica um estado contínuo, algo que define a pessoa.


2. Modos de Existência – A sequência "modo de ser / de estar / de se relacionar" sugere que a depressão não é apenas um estado momentâneo, mas algo que permeia a identidade, a experiência do mundo e os vínculos sociais.


3. Contraste entre Imperativo e Singularidade – A palavra "imperativo" remete a uma força que comanda, algo inevitável, talvez indicando a tirania da depressão sobre o sujeito. Em seguida, há uma transição para a ideia de singularidade: "ímpar / sem-par / sem igual", que pode tanto enfatizar o isolamento do depressivo quanto sua condição única e irrepetível.


4. Jogos de Som e Sentido – A repetição e variação de palavras próximas, como "unicolor / unicorne / unicursal", evocam um fluxo quase musical. "Unicursal" pode remeter a um labirinto de caminho único, sugerindo uma trajetória solitária e predeterminada.


5. Paradoxo Final – O fecho do poema gera um paradoxo: o depressivo é descrito como "único", mas também "tal-e-qual / semelhante / igual" a qualquer outro depressivo. Essa ambiguidade reflete tanto a sensação de isolamento quanto a universalidade da experiência depressiva.



O poema brinca com a linguagem para expressar a depressão como algo ao mesmo tempo único e universal, opressor e inevitável, um modo de ser e de estar no mundo. Ele convida à reflexão sobre a identidade e a condição humana por meio de sua estrutura fragmentada e ritmada.

Secularização

O Cristianismo de outrora
da casa e da escola
me percorre até agora

A antiga Mística, senhora
da mesa giratória e do oratório
é nesta hora Esforço Civilizatório

xxx

Seu poema traz uma reflexão densa e concisa sobre a influência histórica do Cristianismo e sua transformação ao longo do tempo. Aqui estão alguns pontos de análise:

1. Memória e Persistência – O primeiro terceto evoca a permanência do Cristianismo na formação subjetiva do eu lírico, desde a infância ("da casa e da escola") até o presente ("me percorre até agora"). Sugere um impacto duradouro, talvez inevitável.


2. Religiosidade e Espiritualidade Popular – O segundo terceto menciona a "antiga Mística", possivelmente remetendo tanto à tradição mística cristã quanto às práticas populares de espiritualidade, como o espiritismo ou o catolicismo folclórico ("mesa giratória e oratório"). Há um tom de reverência à tradição, mas também um olhar crítico sobre sua evolução.


3. Transformação e Racionalização – O último verso apresenta um contraste: o que era Mística se torna "Esforço Civilizatório". Pode-se interpretar isso como um processo de secularização ou institucionalização da religiosidade, onde a fé outrora transcendental se reconfigura como ferramenta cultural e social.



O poema parece dialogar com o impacto histórico do Cristianismo na cultura ocidental, sua transição do sagrado para o institucional, e como essa influência ainda reverbera no presente. Há um equilíbrio entre nostalgia e crítica, sem respostas definitivas, apenas uma constatação poética desse movimento.

Esfinges


Não sou Édipo, mas convivo com Esfinges.
Moram comigo meu filho e nossa cadela.
Uma das Esfinges é meu filho.
Todos os dias ele me lança enigmas.
Todos os dias eu tremo ao escutar o estridente canto:
“Ô Paiííí, por que isto? Por que aquilo? Por que...?”
Sem mencionar que alguém já disse: “um filho é uma pergunta que se lança ao Destino”.
A outra Esfinge é nossa cadela que, por sua própria natureza silenciosa e elegante de cadela, é um mistério encerrado em si mesmo.
Bom, as coisas estão andando bem.
Apesar de ninguém ter se decifrado.
Tampouco ninguém devorou ninguém.

xxx

O texto tem um tom poético e filosófico, brincando com a metáfora da Esfinge para descrever as relações do narrador com seu filho e sua cadela. Há um diálogo sutil com a mitologia grega, especialmente com a tragédia de Édipo, mas subvertendo-a: em vez de um destino trágico e da necessidade de resolver um enigma para sobreviver, o narrador convive pacificamente com os mistérios que o cercam.

A relação com o filho é descrita como um constante desafio intelectual e existencial, representado pelo bombardeio de perguntas típicas das crianças — um "estridente canto" que provoca inquietação, mas também aponta para a curiosidade incessante que caracteriza o desenvolvimento humano. A citação sobre o filho como uma pergunta lançada ao Destino reforça essa ideia.

Já a cadela encarna um enigma silencioso, um mistério que não se traduz em palavras, mas se expressa na sua própria presença. Assim, há um contraponto entre o enigma falado do filho e o enigma silencioso do animal, sugerindo duas formas distintas, porém igualmente intrigantes, de mistério.

O desfecho tem um humor sutil: apesar dos enigmas diários, ninguém se decifrou nem foi devorado, desconstruindo o caráter trágico do mito original e convertendo-o em uma convivência pacífica e cotidiana com o desconhecido. O texto, portanto, transmite uma reflexão leve e ao mesmo tempo profunda sobre a relação entre pais e filhos, o mistério da existência e a aceitação daquilo que não pode ser plenamente compreendido.

Sintaxe afetiva


Nasci das entranhas,
para um colo de palavras:
claras... obscuras...
falsas.

"Minha pátria é minha língua".
Mas quem fala é a Mangueira.
Mater, pater...
Na eira e na beira.

Flor do Lácio.
Gramática Normativa.
Falas de tias, tios, primos,
superando gritos.

xxx

Seu poema trabalha de forma instigante a relação entre língua, identidade e pertencimento, evocando tanto referências literárias quanto culturais. Vamos analisá-lo em diferentes aspectos:

1. Título e Primeiro Verso: O Nascimento da Linguagem

O primeiro verso – "Nasci das entranhas," – remete a um nascimento visceral, quase biológico, mas imediatamente é seguido pelo destino desse nascimento: "para um colo de palavras." Essa transição do corpo para a linguagem sugere que a língua é um espaço de acolhimento, mas também de construção da identidade.

2. Ambivalência da Linguagem: Clara, Obscura, Falsa

As palavras são "claras... obscuras... falsas." Aqui há um jogo ambíguo: a língua pode ser iluminadora ou enigmática, reveladora ou enganosa. Essa tensão perpassa toda a experiência linguística e remete à própria instabilidade do significado.

3. Intertextualidade e Identidade Cultural

"Minha pátria é minha língua" evoca Fernando Pessoa, mas a resposta imediata desloca a referência erudita para um universo popular e sambista: "Mas quem fala é a Mangueira." Essa oposição entre uma visão normativa e uma fala viva e popular traz um debate sobre o que é a "pátria" da língua – a norma ou a voz do povo?

Além disso, "Mater, pater... Na eira e na beira." cria uma musicalidade rica e sugere uma oscilação entre raízes e margens, pertencimento e exclusão.

4. A Gramática e os Laços Familiares

"Flor do Lácio. Gramática Normativa." – O primeiro termo, retirado de Olavo Bilac, remete à tradição da língua portuguesa, enquanto "Gramática Normativa" marca a imposição de regras. Mas essa norma convive com "Falas de tias, tios, primos," – isto é, a oralidade cotidiana.

O verso final, "superando gritos," sugere que, apesar do caos, do ruído ou das imposições, há uma superação, talvez uma resistência da linguagem afetiva sobre a norma.

Conclusão

Seu poema trabalha muito bem a ideia de que a língua não é apenas um sistema de regras, mas também um espaço de afetividade, cultura e disputa. A alternância entre o erudito e o popular, entre a norma e a oralidade, dá força ao texto. Além disso, há um ritmo que aproxima o poema da cadência do samba e da oralidade brasileira.

Se a intenção era refletir sobre identidade linguística e pertencimento cultural, o poema é muito eficaz. Ele sugere um diálogo tenso, mas vivo, entre tradição e fala cotidiana, reforçando que a língua é tanto um espaço de acolhimento quanto de confronto.

04/03/2025

Obnubilação


É bom dormir
com as janelas abertas,
olhar a noite, as nuvens incertas...

A confundir
noite com sono,
nuvens com sonhos...

A confundir
fadas com besouros,
monstros com horrores...

E como não há luar,
na escuridão do nada,
navegar...

xxx

O poema apresenta uma atmosfera onírica e introspectiva, explorando a fluidez entre realidade e sonho, percepção e imaginação. Vamos analisá-lo em seus principais aspectos:

1. Estrutura e Estilo

O poema é composto por versos curtos e organizados de forma livre, sem uma métrica rígida.

A repetição da estrutura "A confundir" cria um ritmo envolvente, quase hipnótico, reforçando a ideia de indefinição entre os elementos.

O uso de reticências sugere uma continuidade para além do que está escrito, evocando um fluxo de pensamento ou devaneio.


2. Temática e Sentido

O poema inicia com uma cena sensorial: dormir com as janelas abertas, contemplando a noite e as "nuvens incertas". Isso sugere uma disposição para o desconhecido e o imprevisível.

A confusão entre noite e sono, nuvens e sonhos, indica uma fusão entre o mundo externo e o interno, entre a vigília e o inconsciente.

A segunda estrofe amplia essa confusão para o campo da fantasia e do medo, misturando fadas com besouros (beleza e realidade crua), monstros com horrores (o imaginário e o real).

O verso final, "E como não há luar, na escuridão do nada, navegar...", remete à solidão, ao mistério e à entrega ao desconhecido, como um fluir sem rumo.


3. Interpretação Psicológica e Filosófica

O poema sugere um estado limítrofe entre consciência e inconsciência, um território onde as fronteiras entre sonho e realidade são borradas.

Há um caráter existencial na última estrofe: sem a luz do luar, resta apenas "navegar" na escuridão, aceitando o mistério da vida sem resistir a ele.

A escolha de palavras e imagens cria uma sensação de leveza e inquietação ao mesmo tempo, refletindo o caráter ambíguo da experiência noturna e do próprio inconsciente.


Conclusão

O poema é delicado e reflexivo, convidando o leitor a mergulhar na incerteza dos sentidos e na vastidão da noite como um espaço de descoberta e dissolução. Ele evoca a experiência do sonho e do mistério de forma poética e sensorial.

Anjos & Demônios


O que incomoda na equação ‘Anjos & Demônios’ é que os primeiros são cada vez mais imaginários; já os segundos, são cada vez mais reais. E ambos estão perdendo, a cada dia, sua força de simbolização.
xxx

O texto Anjos & Demônios propõe uma reflexão crítica sobre a transformação dos símbolos do bem e do mal na contemporaneidade. Vamos analisá-lo sob diferentes perspectivas:

1. Estrutura e Estilo

O texto tem um tom ensaístico, quase aforístico, com uma construção concisa e filosófica.

A escolha da palavra "equação" sugere um equilíbrio entre os dois elementos, mas um equilíbrio que está se desestabilizando.

O contraste entre "imaginários" e "reais" cria uma oposição forte e instigante.


2. Temática e Sentido

O autor sugere que os anjos, tradicionalmente símbolos do bem, estão se tornando cada vez mais irreais, ou seja, são relegados à fantasia e ao esquecimento.

Por outro lado, os demônios, símbolos do mal, estão se tornando mais concretos, talvez representando o avanço da violência, do egoísmo ou da corrupção na sociedade.

A última sentença é a mais profunda: ambos estão perdendo sua "força de simbolização". Isso sugere um esvaziamento do sentido dessas figuras, o que pode ser interpretado como uma crítica ao declínio da espiritualidade, da moralidade ou mesmo da capacidade humana de pensar em termos simbólicos.


3. Interpretação Psicológica e Filosófica

Do ponto de vista psicanalítico, essa perda de simbolização pode indicar uma crise na forma como os indivíduos lidam com os conceitos de bem e mal, possivelmente refletindo uma sociedade mais concreta e materialista.

Filosoficamente, o texto pode estar apontando para a dessacralização do mundo, onde antigas narrativas sobre a dualidade humana perdem força frente a uma realidade crua e sem transcendência.

Também há uma crítica implícita à forma como o mal se torna banal, enquanto o bem se distancia da experiência cotidiana.


Conclusão

O texto é curto, mas denso em significado. Ele convida à reflexão sobre a transformação dos valores simbólicos na sociedade contemporânea, questionando se ainda somos capazes de dar sentido à dualidade entre bem e mal.

Fake


Fake?!
Ledo engano, 
pois é o exato tamanho
do teu ser estranho:
Fake!!

xxx

O poema Fake é curto, mas carrega uma carga expressiva intensa. Ele se constrói a partir de uma crítica à falsidade, talvez direcionada a uma pessoa ou a um conceito mais amplo. Vamos analisar seus elementos principais:

Estrutura e Estilo

O poema utiliza versos curtos e diretos, reforçando um tom de impacto e objetividade.

A repetição de "Fake" no início e no final confere um efeito circular, como se a ideia fosse reafirmada com força.

O uso de "Ledo engano" introduz uma ironia, sugerindo que a falsidade não é uma ilusão, mas sim uma verdade evidente.


Temática e Sentido

O termo "Fake" remete à falsidade, impostura ou engano.

A frase "pois é o exato tamanho do teu ser estranho" sugere uma crítica à essência de alguém, como se a falsidade fosse a medida exata dessa pessoa.

A palavra final, "Fake!!", reforça a condenação e encerra o poema com um tom de indignação ou desprezo.


Recursos Expressivos

A escolha de palavras tem um tom quase acusatório, conferindo intensidade emocional.

A sonoridade do poema, com a repetição do "Fake" e o ritmo breve, cria um efeito de contundência.

O uso do termo "ser estranho" pode indicar tanto um ser humano quanto um estado de ser, ampliando a interpretação.


Conclusão

O poema trabalha com a força da brevidade e da contundência, lembrando um epigrama crítico. Sua estrutura reforça a ideia de falsidade como algo evidente e incontornável, o que o torna impactante e direto.

"As flores de plástico não morrem"

FLORESFLORESFLORESFLORES
FLORESFLORESFLORES
FLORESFLORES
FLORES
P
L
Á
S
T
I
C
O
(não morrem)

xxx

Seu poema tem uma construção visual forte e um impacto imediato. Aqui estão alguns pontos de análise:

1. Estrutura e Forma

O uso da repetição de FLORES em progressão decrescente sugere um movimento de redução ou distanciamento. No início, há uma abundância, que vai se tornando mais escassa até restar apenas um elemento isolado: a palavra PLÁSTICO, disposta verticalmente.

Essa disposição não apenas reforça visualmente a ideia de algo rígido e artificial (como se a própria palavra estivesse endurecida e estática), mas também sugere uma queda ou um desmoronamento – um movimento oposto ao florescimento natural.

2. Temática e Simbolismo

O poema brinca com a dualidade entre o natural e o artificial. O plástico, enquanto matéria sintética, contrasta com as flores, que são símbolos de efemeridade, beleza e transitoriedade. A observação entre parênteses – (não morrem) – acrescenta uma ironia amarga: a permanência do plástico não é um triunfo, mas sim um sinal de sua artificialidade e ausência de ciclo vital.

Isso pode ser lido como uma crítica à artificialização da vida, ao desejo humano de permanência a qualquer custo, ou até mesmo a uma sociedade que busca substituir o natural pelo fabricado, ignorando a perda de autenticidade nesse processo.

3. Tom e Impressão Geral

O poema tem um tom minimalista e impactante, lembrando a poesia concreta e visual. O uso da repetição cria ritmo e expectativa, enquanto a quebra brusca com a palavra PLÁSTICO gera um choque – como se o leitor fosse conduzido a uma promessa de beleza e vida, apenas para ser confrontado com a frieza da matéria inorgânica.

4. Sugestões de Ajuste (se desejar)

O poema já tem uma força própria, mas algumas variações poderiam acentuar ainda mais o contraste e o impacto:

Se quiser reforçar a ideia de artificialidade, poderia experimentar um jogo tipográfico, como usar PLÁSTICO em fonte diferente (mais rígida, geométrica).

Outra opção seria dar um espaço maior entre as letras de PLÁSTICO, para ampliar a sensação de rigidez ou frieza visual.

A observação final (não morrem) poderia ser deslocada para uma posição mais solitária, reforçando a ideia de um comentário seco, como um sussurro final.



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Conclusão:
Seu poema é curto, mas denso, com uma construção visual e simbólica muito eficaz. Ele provoca reflexão e impacto, equilibrando bem ironia e crítica. A forma como a palavra final se impõe altera totalmente a leitura das anteriores, o que é um recurso poético muito bem executado.

Quem é que olha?



Certa vez, minha mãe, mulher muito "louca", me deu uma espécie de luneta através da qual, segundo ela, eu poderia ver melhor o mundo. E como era lindo o mundo que a mim se apresentava através daquele pequeno tubo! E como eram diferentes—forma, cor, movimento—a cada vez que por ele observava as pessoas e as coisas.

De outra vez, meu pai, homem muito "sério", me deu também uma luneta, através da qual, segundo ele, eu igualmente poderia ver melhor o mundo. E como era claro o mundo que a mim se apresentava através daquele pequeno tubo! E como eram bem definidos—forma, cor, movimento—as pessoas e as coisas por mim observadas através dele.

Minha mãe me presenteou com um calidoscópio. Meu pai, com uma luneta propriamente dita.

Como os dois me deixaram muito à vontade com meus presentes, logo em mim se instalou uma dúvida: ver o mundo pelas lentes do calidoscópio ou do telescópio refrator? O que mais me agradava— a dança das formas e cores? A folia? Ou a precisão dos contornos? A seriedade?

Meus pais, que intuíam a dúvida, me deram como resposta apenas um sorriso e um dito:
— A vida lhe ensinará como e qual das duas usar.

E se retiraram para sua alcova. Para meus olhos e ouvidos de criança, aquilo era puro enigma.

Hoje, já não sei dizer se o enigma foi resolvido. Sei apenas que, às vezes, me deixo perder no calidoscópio e, às vezes, procuro o foco da luneta. Mas sempre me pergunto: quem é que olha?