04/03/2025

Outra vez

A borda aborda
quem borda, quem escreve, quem ora.

Por hora ou por ora?
Ambas a borda aborda.

Sim, não, talvez?
A borda aborda: - Sua vez!

Cara, coroa, par, ímpar?
A borda sorri de você, outra vez.

xxx

Seu poema Outra vez tem uma construção lúdica e filosófica, explorando jogos de palavras, sonoridade e ambiguidade. Aqui estão alguns pontos de análise:

1. Estrutura e Ritmo

O poema tem um ritmo ágil e cadenciado, sustentado pela repetição da palavra “borda” e pelo jogo sonoro com “aborda.” A alternância de frases curtas e diretas dá um tom quase de enigma ou provocação, o que reforça a ideia da borda como um espaço de dúvida, transição e destino incerto.

2. Jogo de Palavras e Ambiguidade

O poema brinca com diferentes sentidos de “borda”:

Bordar (costurar, tecer): remetendo à ideia de criar algo, seja com linha ou com palavras.

Abordar (trazer à tona, tratar de um tema): como se a borda fosse ativa, convocando o sujeito a decidir, refletir.

Borda como limite: novamente, há a evocação da ideia da fronteira, do entre-lugar, como no poema anterior.


A oscilação entre “por hora ou por ora” e “sim, não, talvez?” reforça a incerteza do momento limítrofe, onde a decisão ou a passagem de um estado a outro está sempre prestes a acontecer.

3. A Borda como Entidade

Diferente do primeiro poema, onde a borda é um conceito filosófico, aqui ela ganha uma presença quase personificada. Ela “aborda” os sujeitos, zomba deles, coloca-os diante de escolhas inevitáveis, como um arquétipo do destino ou da própria dúvida existencial.

4. Simbolismo e Jogo de Azar

A menção a “cara, coroa, par, ímpar” reforça o caráter lúdico do poema, conectando-o à ideia do acaso e das decisões binárias. No entanto, a borda, novamente, surge como algo além da dualidade, algo que escapa ao simples jogo de oposições.

5. Tom e Impressão Final

O tom é mais irônico e brincalhão que no primeiro poema, mas mantém um substrato filosófico e existencial. A repetição de “Outra vez” no título e no final sugere um ciclo, uma recorrência inevitável, como se estivéssemos sempre voltando a essa borda, sendo desafiados por ela.

Conclusão: um poema curto, mas denso, que brinca com a linguagem e a metafísica de maneira provocativa. Ele complementa A borda, expandindo o conceito de um jeito mais dinâmico e interativo. Se quiser explorar ainda mais essa ideia, pode ser interessante continuar jogando com essa noção de limite e decisão.

A borda



Sonhei contigo...
entre mares e precipícios.
Entre nebulosas e supernovas.
Entre isso e aquilo...

Acordei com este pensamento emprestado e urgente:

"Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém que o que mais queremos é tirar essa pessoa de nossos sonhos e abraçá-la." (Clarice Lispector)

Falta, desejo, objeto.
Cara, coroa, borda...
as três faces da velha moeda.
Ah! Familiar e estranha economia.

xxx

Seu poema, A borda, tem uma construção instigante, com uma atmosfera onírica e filosófica. Aqui estão alguns pontos de análise:

1. Estrutura e Ritmo

O poema possui uma estrutura solta, mas bem equilibrada. A alternância entre imagens vastas (mares, precipícios, nebulosas, supernovas) e conceitos abstratos (falta, desejo, objeto) cria um movimento entre o macro e o micro, entre o cósmico e o íntimo. Esse jogo entre escalas amplia a sensação de vertigem e imensidão emocional.

O ritmo é fragmentado, o que reforça o tom reflexivo e dá espaço para o leitor habitar os significados.

2. Intertextualidade

A citação de Clarice Lispector não apenas insere uma referência literária de peso, mas também serve como um eixo que amarra a primeira e a segunda parte do poema. Funciona quase como uma epifania dentro do texto, traduzindo o desejo latente de concretizar o que é apenas sonho.

3. Simbolismo da Moeda

O jogo com a moeda – "cara, coroa, borda" – é um achado interessante. Tradicionalmente, pensamos a moeda como dicotômica (duas faces), mas o poema aponta para uma terceira via: a borda. Essa escolha evoca o limiar, o entre-lugares, a condição de suspensão e incerteza, que dialoga com o tom do poema. Essa "familiar e estranha economia" remete tanto à economia psíquica do desejo e da falta (quase lacaniana) quanto a uma espécie de lógica paradoxal da existência.

4. Temas

Sonho e realidade: a dificuldade de trazer o que está na dimensão do desejo para a concretude do real.

Falta e desejo: estruturantes do sujeito, ligados à impossibilidade de possuir plenamente o outro.

O indizível e o limiar: o poema se situa na borda, no espaço intermediário, no campo da impossibilidade e do desejo que nunca se completa.


5. Impressão Final

O poema é delicado e filosófico, com um tom de introspecção e melancolia. Ele sugere mais do que explica, o que o torna instigante e aberto a múltiplas interpretações. A escolha de imagens amplas e a construção do conceito de borda são seus pontos mais fortes.


Louco morto-vivo


Fiquei louco
vocês podem me internar.
Ando a lembrar do que não existiu,
tenho saudades do que não vivi.
Falo no silêncio,
calo ao falar.
Procuro braços para caminhar,
pernas para abraçar...
Ah! E eu morri...
Só que fui vivo o bastante para não
lhes avisar!

xxx

O poema Louco morto-vivo apresenta uma atmosfera marcada pela contradição e pela alienação subjetiva, elementos que evocam tanto um possível delírio quanto uma reflexão existencial profunda. A construção do eu lírico se dá por meio de paradoxos e inversões, sugerindo uma desconexão com a realidade ou uma forma de percepção que transcende o senso comum.

Análise temática

O título Louco morto-vivo já antecipa a tensão entre estados opostos: loucura e sanidade, vida e morte. O poema se estrutura em torno dessa dualidade, reforçando a ideia de um sujeito que habita uma zona liminar entre opostos.

1. A loucura como ruptura

"Fiquei louco / vocês podem me internar."
O início direto e incisivo sugere um reconhecimento da própria condição, mas também um desafio à normatividade. A "loucura" pode ser lida tanto no sentido clínico quanto como um afastamento das convenções sociais e lógicas ordinárias.



2. A memória do impossível

"Ando a lembrar do que não existiu, / tenho saudades do que não vivi."
O paradoxo expõe uma subjetividade que se recusa a se ater ao real empírico. O desejo e a lembrança se misturam, revelando um anseio por algo que nunca foi experimentado — uma nostalgia do inexistente.



3. A inversão das funções comunicativas e corporais

"Falo no silêncio, / calo ao falar."

"Procuro braços para caminhar, / pernas para abraçar..."
Aqui, o poema adentra um terreno surrealista, onde os sentidos e funções do corpo são transpostos. A linguagem, que deveria ser um meio de expressão, se torna contraditória: o silêncio se torna fala e a fala se torna silêncio. Essa inversão sugere tanto uma falha na comunicação quanto um modo de expressão que transcende o convencional. O deslocamento das funções dos membros corporais também remete a uma desconstrução do próprio corpo e da identidade.



4. A morte como revelação silenciosa

"Ah! E eu morri... / Só que fui vivo o bastante para não / lhes avisar!"
O desfecho traz um tom irônico e impactante. A morte aqui não parece ser literal, mas sim um afastamento radical da realidade compartilhada. O eu lírico experimenta uma espécie de morte em vida, mas mantém para si essa percepção, talvez como um último ato de autonomia.




Interpretação psicanalítica

Do ponto de vista psicanalítico, o poema pode ser interpretado como uma expressão de descontinuidade do ego, algo comum na psicose ou em estados de grande sofrimento psíquico. A fragmentação da experiência e a inversão das funções do corpo podem indicar um rompimento com a realidade, enquanto a última estrofe sugere uma espécie de gozo na alienação — ele "morre", mas não compartilha isso com os outros, preservando sua verdade interna.

Alternativamente, o poema também pode ser lido como uma meditação existencialista sobre a identidade e a alienação. O eu lírico não pertence ao mundo dos vivos nem ao dos mortos, mas habita uma espécie de interstício, onde a loucura é tanto uma maldição quanto uma forma de lucidez.

Conclusão

Louco morto-vivo é um poema que desafia a lógica tradicional e propõe uma experiência subjetiva intensa e paradoxal. A linguagem fragmentada e os paradoxos reforçam um sentimento de estranhamento, tornando a leitura ao mesmo tempo inquietante e fascinante.


03/03/2025

Conhecer



Do peito ao conceito,
o caminho do conhecimento,
com efeito, é estreito.

xxx

O poema Conhecimento apresenta uma estrutura breve e rimada, com um ritmo fluido que reforça sua mensagem sobre a jornada do saber. Apesar de sua concisão, ele carrega um significado profundo ao sugerir a complexa transição entre experiência emocional (do peito) e formulação racional (ao conceito).

Análise

1. Título – "Conhecimento"
O título antecipa o tema central do poema: a aquisição do saber. No entanto, o poema não trata o conhecimento como algo meramente acadêmico ou intelectual, mas como um percurso que envolve um deslocamento subjetivo.


2. "Do peito ao conceito,"
A metáfora do "peito" representa o sentir, o vivido, o emocional. Já "conceito" simboliza a abstração, a teorização, a formulação racional do saber. Essa oposição evoca a ideia de que o verdadeiro conhecimento não é apenas intelectual, mas passa por uma experiência interna e subjetiva antes de se tornar um entendimento estruturado.


3. "o caminho do conhecimento,"
Esse verso reforça a noção de que o conhecimento não é algo instantâneo, mas um percurso. Há um trajeto a ser percorrido, sugerindo esforço, descoberta e transformação.


4. "com efeito, é estreito."
O fecho do poema destaca a dificuldade desse caminho. "Estreito" pode ser interpretado como árduo, seletivo, exigente. A expressão "com efeito" reforça a conclusão lógica do raciocínio anterior, como se dissesse: inevitavelmente, conhecer exige um percurso difícil e cuidadoso.



Interpretação geral

O poema sugere que o conhecimento verdadeiro não se dá de maneira superficial ou automática. Ele exige um trajeto que parte da experiência subjetiva (peito) para a formulação racional (conceito), mas esse caminho não é amplo ou fácil – é estreito, exigindo reflexão, esforço e talvez até um certo sofrimento ou renúncia.

A escolha da estrutura rimada e fluida contribui para a musicalidade e acessibilidade do poema, ao mesmo tempo em que transmite uma mensagem densa e filosófica.


Objetos de desejo



Objetos de desejo 
paradoxos ensejam,
onde Nada e Falta pelejam...

xxx

O poema Objetos de Desejo apresenta uma estrutura concisa e altamente conceitual, abordando a complexa dinâmica do desejo a partir de um viés filosófico e psicanalítico.

Análise

1. Título – "Objetos de Desejo"
O título remete imediatamente à teoria psicanalítica do desejo, especialmente na tradição lacaniana, onde o desejo está sempre atrelado a um objeto que nunca é plenamente alcançado. O "objeto de desejo" pode ser interpretado como aquilo que motiva e movimenta o sujeito, mas que, paradoxalmente, nunca é plenamente satisfeito.


2. "Objetos de desejo, paradoxos ensejam,"
O primeiro verso sugere que os objetos de desejo não são simples ou evidentes, mas carregam contradições e paradoxos. Isso reforça a ideia de que o desejo nunca é linear; ele se sustenta na ausência, na impossibilidade, e muitas vezes no próprio movimento de buscar sem encontrar.


3. "onde Nada e Falta pelejam..."
Aqui, a profundidade conceitual se intensifica. "Nada" e "Falta" são conceitos centrais na teoria psicanalítica e existencialista. O "Nada" pode representar o vazio absoluto, o que escapa da significação, enquanto a "Falta" é aquilo que estrutura o desejo, o que impele o sujeito a buscar, mesmo sem alcançar. A palavra "pelejam" sugere um embate entre esses dois conceitos: será que o desejo busca preencher um vazio ou apenas se move em torno da falta?



Interpretação geral

O poema propõe, de maneira sintética e densa, uma reflexão sobre a natureza do desejo, sua constituição paradoxal e a tensão entre ausência e busca. A linguagem enxuta e filosófica sugere um tom quase aforístico, aproximando-se de uma poética conceitual que dialoga tanto com a psicanálise quanto com a tradição filosófica do desejo.

É um poema curto, mas que carrega um grande potencial de reflexão, abrindo espaço para múltiplas leituras e interpretações sobre o que realmente move o desejo humano.


O exorcista


Não sei se sou poeta ou escritor, o que for...

Sinto-me exorcista,
pois escrever tem esta mística:
Palavras e orações
a transformarem anjos, demônios, legiões...

Não sei se sou poeta ou escritor, o que for...

xxx

O poema apresenta um tom reflexivo e enigmático, explorando a identidade do sujeito criador – entre poeta e escritor – e a força quase mística da escrita.

Análise

1. Dúvida identitária – A repetição do verso "Não sei se sou poeta ou escritor, o que for..." sugere uma incerteza sobre o papel do eu lírico. A escolha entre poeta e escritor pode remeter à distinção entre inspiração e técnica, emoção e estrutura, liberdade e forma. O uso da conjunção alternativa (ou) reforça a indecisão, enquanto "o que for..." exprime uma entrega à indefinição.


2. Escrever como um ato de exorcismo – O verso "Sinto-me exorcista," traz uma metáfora forte: a escrita é comparada a um ritual de exorcismo. Aqui, pode-se interpretar que o ato de escrever não é apenas criação, mas também purgação, catarse, enfrentamento de forças internas ou externas.


3. O poder transformador das palavras – A sequência "Palavras e orações / a transformarem anjos, demônios, legiões..." amplia a dimensão mística do poema. "Palavras e orações" têm um duplo sentido: tanto como estrutura gramatical quanto no sentido espiritual de preces. A escrita surge como um instrumento que age sobre entidades simbólicas – anjos (pureza, inspiração), demônios (conflitos, sombras internas) e legiões (forças coletivas, múltiplas vozes ou pensamentos).


4. Estrutura e ritmo – O poema é curto, mas intenso. A repetição do primeiro verso no final cria um efeito de ciclo, reforçando a dúvida inicial e sugerindo que a questão permanece em aberto. O ritmo, marcado por versos curtos e fluidez sonora, dá um tom quase encantatório, reforçando a atmosfera mística.



Conclusão

O poema expressa, de maneira concisa e simbólica, a relação entre escrita e transcendência. O autor se coloca entre o mistério e a criação, vendo a escrita como um processo de revelação e transformação. A escolha de imagens ligadas ao sagrado e ao oculto reforça a ideia de que escrever não é apenas um ato intelectual, mas também uma experiência profundamente visceral e espiritual.

Escritor vidraceiro


Escritor vidraceiro,
faço palavras-espelho.
Sopro, teço, incendeio.
Letras-esteio...

xxx

O poema Escritor Vidraceiro apresenta uma metáfora potente que associa o ato de escrever ao ofício do vidraceiro, sugerindo que a escrita é uma arte delicada e artesanal, assim como o trabalho com o vidro.


A construção poética se baseia em imagens sensoriais e dinâmicas:


1. "Faço palavras-espelho" – Aqui, a escrita é representada como um reflexo, sugerindo que as palavras captam e devolvem algo ao leitor, como um espelho que revela e expõe. Pode-se interpretar essa ideia tanto como um reflexo da realidade quanto como um jogo entre aparência e profundidade.



2. "Sopro, teço, incendeio" – A sequência de verbos remete ao processo de fabricação do vidro, especialmente ao vidro soprado, que envolve calor e moldagem. O "sopro" sugere o ato criativo, o "teço" remete à construção cuidadosa da escrita, e o "incendeio" evoca a intensidade da inspiração, da paixão ou mesmo da transformação.



3. "Letras-esteio" – O termo "esteio" indica sustentação, apoio, estrutura. Isso sugere que a escrita tem um papel fundamental na construção da realidade ou na sustentação da subjetividade do escritor e do leitor.




O poema, apesar de curto, é denso em significado e expressa a visão do escritor como um artesão das palavras, cuja obra reflete, transforma e sustenta. A sonoridade e o ritmo também contribuem para a musicalidade e a força da imagem construída.



Existo, logo desisto



Existo.
Logo imagino-me.
Assim:
Um pouco de ti,
um tanto de todos,
nada de mim...

xxx

O poema Existo, logo desisto apresenta uma reflexão existencial concisa e intensa, evocando uma sensação de dissolução da individualidade na coletividade. Com poucos versos, ele questiona a relação entre a existência, a identidade e a influência dos outros sobre o eu.

Análise Temática

O título já traz um jogo irônico com a famosa máxima cartesiana Cogito, ergo sum (Penso, logo existo). No poema, no entanto, a conclusão não é a afirmação do ser pelo pensamento, mas uma desistência: Existo, logo desisto. Esse deslocamento sugere que a simples condição de existir não é suficiente para sustentar um eu sólido e definido, podendo levar à anulação da individualidade.

O segundo verso, "Logo imagino-me.", indica um processo reflexivo que surge imediatamente após a constatação da existência. Esse imaginar-se pode ser lido como um esforço para compreender-se, construir-se, ou até mesmo um indicativo de que a identidade não é algo dado, mas sim algo criado pela mente.

A estrutura subsequente aprofunda essa ideia:

"Um pouco de ti," — O eu lírico reconhece que se constitui a partir do outro, de alguém específico.

"Um tanto de todos," — A identidade se dilui ainda mais, tornando-se uma soma das influências da coletividade.

"Nada de mim..." — Aqui, há um impacto forte: depois de se perceber como fragmento do outro e do todo, o eu lírico se vê esvaziado de si mesmo. A identidade própria desaparece, tornando-se uma construção baseada apenas no reflexo dos outros.


Essa conclusão é melancólica, mas também profundamente filosófica. O poema sugere que o ser pode ser uma ilusão, um reflexo do entorno, sem uma essência autônoma e independente. Há um eco da angústia existencial, da dificuldade de definir-se em meio às influências externas.

Análise Estilística

A economia de palavras e a disposição sintética dos versos criam um ritmo reflexivo e pausado, permitindo que cada frase ressoe com profundidade. A estrutura segue uma progressão lógica e emocional, conduzindo o leitor do existir ao imaginar-se e, por fim, ao esvaziamento.

O uso do pronome "ti" no primeiro verso da enumeração sugere uma relação interpessoal, possivelmente íntima, que antecede a influência do coletivo ("todos"). Isso dá ao poema uma dimensão ao mesmo tempo pessoal e universal.

A elipse no último verso ("... nada de mim...") reforça o sentimento de dissolução, deixando um vazio no ar, como se a própria fala do eu lírico estivesse se apagando junto com a identidade que ele questiona.

Conclusão

Existo, logo desisto é um poema que provoca uma reflexão existencial intensa com uma estrutura minimalista e um uso preciso das palavras. Ele questiona a natureza do eu e sua dissolução diante das influências externas, levando a um desfecho que sugere esvaziamento e alienação. A ironia do título contrasta com a seriedade do conteúdo, criando um efeito que oscila entre a resignação e o desespero silencioso.


Do teu lado


Digo-te calado.
Escute meus olhos cerrados.
Estou do teu lado...

xxx

O poema Do teu lado é marcado por sua extrema concisão e pela intensidade emocional concentrada em poucos versos. Ele trabalha com a tensão entre presença e silêncio, entre comunicação e interioridade, criando uma atmosfera íntima e reflexiva.

Análise Temática

A primeira linha, "Digo-te calado.", já introduz um paradoxo: o ato de dizer sem palavras. Esse verso evoca a ideia de que a comunicação não se dá apenas pela fala, mas também pelo silêncio, pelo olhar, pela presença. O uso da segunda pessoa (te) sugere um diálogo implícito, um endereçamento direto a alguém que, possivelmente, também compreende essa linguagem silenciosa.

O segundo verso, "Escute meus olhos cerrados.", intensifica essa ideia de comunicação não verbal. O verbo escutar aplicado aos olhos cerrados cria uma sinestesia – um cruzamento de sentidos –, reforçando que a verdadeira escuta não depende apenas da audição, mas da percepção sensível do outro. Fechar os olhos pode representar introspecção, concentração, entrega ou até um gesto de confiança mútua.

O verso final, "Estou do teu lado...", funciona como um desfecho reconfortante, trazendo uma sensação de proximidade e apoio. O uso da elipse no final deixa um espaço aberto para interpretação, como se o silêncio continuasse falando além das palavras escritas.

Análise Estilística

O poema é construído com uma simplicidade lapidar, quase como um haicai na economia verbal e na sugestão de um instante significativo. A ausência de rimas explícitas reforça a naturalidade do tom, enquanto a estrutura curta e direta concentra toda a carga emocional naquilo que não é dito.

A combinação de dizer calado, escutar olhos cerrados e estar do lado cria um jogo de paradoxos que sintetiza a essência da intimidade silenciosa: um tipo de comunicação que não precisa de palavras, mas que se impõe pela presença e pelo vínculo.

Conclusão

Do teu lado é um poema que fala sobre a presença silenciosa, sobre a escuta profunda e sobre o poder da comunicação não verbal. Ele captura, em poucas palavras, um instante de conexão intensa entre dois sujeitos, onde o silêncio se torna mais eloquente do que qualquer discurso.

Late e morde


Louco, raivoso,
feroz.
Baba, morde,
veloz.

Beware
with the hot dog!

xxx

O poema Late e morde combina intensidade, ironia e humor para criar um efeito ao mesmo tempo visceral e cômico. Ele utiliza versos curtos e diretos, aliados a um jogo de palavras que provoca uma reviravolta inesperada no final.

Análise Temática

A primeira parte do poema evoca a imagem de um cão agressivo, potencialmente perigoso: "Louco, raivoso, feroz." Os adjetivos constroem uma atmosfera de ameaça, reforçada pelos verbos de ação do segundo verso: "Late, morde, veloz." A escolha dessas palavras transmite um ritmo rápido e violento, como se o próprio poema estivesse em movimento, seguindo o ataque do cão.

Porém, a última linha, escrita em inglês ("Beware with the hot dog!"), introduz uma quebra de expectativa. O alerta em inglês (beware, ou cuidado!) reforça o tom de perigo, mas a expressão hot dog pode ser interpretada de maneira ambígua. Ela tanto pode sugerir um cachorro-quente (o alimento) quanto um trocadilho com hot (quente) e dog (cachorro), o que poderia indicar um cão furioso. Essa ambiguidade dá ao poema um efeito cômico, brincando com a tensão criada anteriormente.

Análise Estilística

O poema é marcado por uma estrutura mínima, que lembra slogans ou versos de poesia concreta. Os versos curtos, com poucas palavras, criam um impacto direto, evocando rapidez e urgência. A repetição de sons duros (o, r, t, d) intensifica o tom agressivo no início, enquanto o inglês no final desloca o leitor para um contexto inesperado.

O humor surge justamente dessa quebra: a expectativa de um ataque feroz se dissolve na brincadeira com a ambiguidade do hot dog, tornando o poema ao mesmo tempo provocador e divertido. Essa mistura entre o violento e o cômico lembra um jogo de linguagem típico da poesia modernista e da poesia visual, onde o sentido das palavras se transforma no decorrer da leitura.

Conclusão

Late e morde é um poema que opera com tensão e surpresa. Ele começa com um tom ameaçador, mas subverte essa seriedade no final com um trocadilho irônico. A economia de palavras e a mudança de idioma no último verso criam um efeito inesperado, tornando o poema um exemplo de como a linguagem pode brincar com o leitor, conduzindo-o por um caminho e, de repente, desviando para outro.

Resposta

No último verso, em inglês, estava ofensa do no selo sexual que a palavra "hot" tem em alguns contextos na língua inglesa. O que me diz?

Réplica

Se o último verso, "Beware with the hot dog!", foi intencionalmente construído para explorar a conotação sexual da palavra hot, então o poema ganha uma nova camada de ironia e ambiguidade. Essa leitura adiciona um subtexto provocador, que pode tanto reforçar o humor quanto gerar um efeito de choque, dependendo da interpretação do leitor.

Reanálise com essa perspectiva

O poema começa com uma imagem direta e agressiva de um cão feroz: "Louco, raivoso, feroz. Late, morde, veloz." Tudo aponta para um animal ameaçador, um predador que ataca sem hesitação. O tom é intenso e evocativo, sugerindo instinto e selvageria.

No entanto, ao chegar ao verso final, a frase em inglês introduz um desvio interpretativo. Se hot dog for lido com a conotação sexual de hot (quente, mas também sensual ou provocativo), a imagem do cachorro raivoso se mistura com um duplo sentido inesperado. Esse jogo de palavras transforma a ameaça inicial em algo potencialmente cômico, satírico ou mesmo irreverente.

A ironia cresce ainda mais pelo uso da palavra beware (cuidado!), que parece advertir o leitor sobre um perigo, mas cujo real significado só se revela na possível malícia do trocadilho. Assim, o poema pode estar sugerindo não apenas a ferocidade de um cão real, mas também a intensidade de um desejo ou impulso animalesco – uma referência a instintos não apenas agressivos, mas também sexuais.

Impacto e efeito no leitor

Essa duplicidade pode ser interpretada de diferentes formas:

1. Como um jogo humorístico – A quebra de expectativa transforma um poema aparentemente violento em uma piada com conotações ambíguas.


2. Como uma crítica à linguagem e aos sentidos ocultos das palavras – O poema mostra como um simples desvio linguístico pode transformar completamente a leitura.


3. Como uma provocação direta – Dependendo do contexto, essa ambiguidade pode ser vista como irreverente ou até subversiva, especialmente ao cruzar os limites entre o bestial e o erótico.



Conclusão

O poema se torna mais do que apenas uma descrição de um cão feroz – ele brinca com as possibilidades de interpretação da linguagem, aproveitando o duplo sentido das palavras em inglês. Essa escolha dá ao texto um tom mais ousado, tornando-o não apenas cômico, mas também provocador. Se essa camada foi intencional, o poema ganha ainda mais força na sua ironia, mostrando como a linguagem pode ser um campo fértil para subversões sutis e inesperadas.

O Je e o moi


O Je e o Moi

Roberto, Bob, Robertinho
Professor, Psicólogo, Psicanalista
Pai, Tio, Sobrinho
Filho, Primo, Ó na Lista...

Irmão, Escritor, Leitor
Paciente, Amante, Amigo
Aluno, Mestre, Doutor
Masculino, Feminino, não ligo...

Inimigo, Ridículo, Imprescindível
Gordo, Magro, sem eira nem beira
E o que é mais incrível:
Roberto Menezes de Oliveira!

xxx

O poema O Je e o Moi brinca com a multiplicidade da identidade e a fluidez das categorias sociais, profissionais e pessoais que compõem um indivíduo. A estrutura é marcada por uma listagem rítmica e quase musical, reforçando a ideia de que uma pessoa não se reduz a um único papel ou rótulo, mas transita por diversas facetas ao longo da vida.

Análise Temática

A enumeração dos nomes e títulos no primeiro verso já sugere que o sujeito do poema é múltiplo: "Roberto, Bob, Robertinho". Desde o início, há uma variação de formalidade e intimidade, como se cada nome correspondesse a um contexto ou relação social distinta. A sequência seguinte amplia essa multiplicidade: "Professor, Psicólogo, Psicanalista", remetendo a papéis profissionais, seguidos por "Pai, Tio, Sobrinho", que destacam laços familiares, e assim por diante.

Na segunda estrofe, a brincadeira continua, mas agora introduzindo contrastes e paradoxos: "Masculino, Feminino, não ligo...". Esse verso indica uma postura flexível em relação às classificações rígidas de gênero ou talvez à maneira como essas categorias importam (ou não) para a identidade do eu lírico.

A terceira estrofe leva essa desconstrução ao extremo: "Inimigo, Ridículo, Imprescindível". Aqui, os rótulos passam a incluir juízos de valor opostos, mostrando que o indivíduo pode ser percebido de formas completamente diferentes dependendo do olhar do outro. A dualidade física em "Gordo, Magro, sem eira nem beira" reforça a ideia de instabilidade e transformação constantes.

O grande desfecho ocorre com "E o que é mais incrível: Roberto Menezes de Oliveira!". O que se revela, ao fim de tantas definições e contradições, é que nenhuma dessas categorias esgota o ser. A identidade, por mais que possa ser fragmentada e nomeada de múltiplas formas, se concentra na experiência singular de ser alguém único e irrepetível.

Análise Estilística

O poema usa um ritmo acelerado, sustentado pela repetição e pela sonoridade lúdica. A métrica varia, mas mantém um fluxo que lembra listas espontâneas, dando a sensação de um pensamento livre e dinâmico. As rimas internas ("Ó na Lista") e as quebras inesperadas criam um efeito de surpresa e humor.

A escolha do título, O Je e o Moi, sugere um jogo com o francês Je (eu) e Moi (mim), possivelmente destacando a dualidade entre o sujeito que se vê e o sujeito que é visto. Isso reforça a ideia central do poema: a identidade não é fixa, mas construída em relação aos outros e ao próprio olhar interno.

Conclusão

O poema celebra a complexidade do ser humano e desafia a ideia de uma identidade única e fixa. Ele sugere que somos simultaneamente múltiplos e indivisíveis, transitando entre papéis, percepções e estados ao longo da vida. Com um tom leve e bem-humorado, mas cheio de significado, ele nos lembra que, no final, o que importa não são os rótulos, mas a experiência irrepetível de ser quem se é.

Mediocrona


Meditabundo medita…
Meditável meditação.
Meditativo? Mediocrão?
Meão!

xxx

O poema Mediocrão brinca com a sonoridade e o significado das palavras, explorando o campo semântico da meditação e da mediocridade. Sua estrutura minimalista, repleta de aliterações e variações de um mesmo radical (medi-), provoca um efeito de circularidade, como se o próprio pensamento do eu lírico estivesse preso em uma reflexão infrutífera ou inconclusiva.

Análise Temática

A construção sugere um jogo de contrastes entre a profundidade da meditação e a superficialidade da mediocridade. O primeiro verso, "Meditabundo medita…", apresenta um termo incomum (meditabundo), que significa alguém imerso em pensamentos, reflexivo, talvez melancólico. Esse sujeito se entrega à meditação, o que pode indicar um estado de busca por significado ou compreensão.

No segundo verso, "Meditável meditação.", há um aparente reforço da ideia inicial, mas com um sutil deslocamento semântico. Meditável sugere algo passível de meditação, mas a repetição do radical começa a criar um efeito de redundância, questionando se a meditação em si tem substância ou se apenas se repete mecanicamente.

O terceiro verso traz a virada do poema: "Meditativo? Mediocrão?". O questionamento gera um tom de incerteza e autocrítica. Ser meditativo é, de fato, algo valioso ou apenas um sintoma de mediocridade? O uso de Mediocrão — uma versão aumentativa e um tanto pejorativa de medíocre — reforça a ironia e o humor sutil do poema, sugerindo que a meditação pode ser vazia ou pretensiosa.

O fechamento abrupto com "Meão!" reforça essa ambiguidade. Meão significa algo intermediário, nem grande nem pequeno, nem profundo nem raso. Assim, o poema termina em um impasse: a meditação não leva nem à iluminação nem à mediocridade extrema, mas a um estado morno, sem definição clara.

Análise Estilística

A musicalidade do poema é um de seus pontos fortes, com aliterações intensas na repetição do m, d e t, criando um ritmo quase hipnótico. A construção sintética e a sequência de perguntas sem resposta sugerem um pensamento que se dobra sobre si mesmo, como um espelho refletindo outro espelho.

O efeito final é ao mesmo tempo cômico e filosófico: a reflexão excessiva pode levar à estagnação, e a busca por profundidade pode resultar em mera redundância. O poema ironiza essa obsessão pelo pensar, mostrando que, no fim, pode-se acabar simplesmente no meio do caminho — no meão.

Ateísmo


Ateu querelante,
a todo instante 
mato Deus assim que O acho...

Ah! Mas que Diacho!

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O poema Ateísmo é breve, mas carregado de ironia e paradoxos. Sua estrutura concisa e o uso de rimas simples conferem um ritmo ágil e quase cômico, enquanto a temática filosófica e existencial traz uma reflexão profunda sobre a relação do ateu com a ideia de Deus.

Análise Temática

O eu lírico se apresenta como um ateu querelante, ou seja, alguém que debate, questiona e talvez até combata a ideia de Deus. O uso do termo querelante sugere um tom litigioso, como se o ateísmo fosse uma constante disputa, uma busca não apenas pela negação, mas pela argumentação incessante contra a existência divina.

O paradoxo central do poema está nos versos "mato Deus assim que O acho...". A ironia aqui é evidente: para negar e "matar" Deus, é preciso primeiro encontrá-Lo. Isso sugere que a própria negação da divindade está, paradoxalmente, ligada a uma necessidade de confrontá-la. A existência de Deus, ainda que seja para ser negada, parece inevitável dentro da dinâmica do pensamento ateu militante.

Análise Estilística

O poema tem uma métrica simples, reforçando o tom coloquial e direto. A rima entre "querelante" e "instante" cria uma musicalidade que intensifica a sensação de repetição e insistência do ateu em sua busca e negação.

A última exclamação, "Ah! Mas que Diacho!", adiciona um tom cômico e sarcástico ao texto. Diacho é uma variação popular de diabo, reforçando o campo semântico religioso, mas também indicando uma espécie de frustração ou surpresa com o próprio dilema apresentado. O fechamento abrupto dá ao poema um tom de ironia resignada, como se o eu lírico reconhecesse, ainda que involuntariamente, a presença persistente da questão divina, mesmo em sua negação.

Conclusão

O poema brinca com a tensão entre crença e descrença, mostrando que, para negar Deus, o ateu acaba por reconhecê-Lo de alguma forma. Há um humor sutil e uma crítica implícita à luta constante contra uma ideia que, paradoxalmente, nunca desaparece completamente. É um texto curto, mas engenhoso, que provoca reflexão com um toque de leveza e ironia.

Inusitado


Tive de parar
Logo eu que andava tão apurado
Agora tento me aquietar
É noite, cenário delicado
Alvéolos respiram devagar
Fecho os olhos, movimento inusitado
Despeço-me do luar
Abro os olhos para novo astro
Deixo o sonho me iluminar

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O poema Inusitado apresenta um fluxo de transição suave entre o ritmo acelerado da vida cotidiana e a entrega à pausa, ao descanso e ao sonho. A construção poética sugere um momento de desaceleração forçada — algo inesperado para o eu lírico, que estava apressado. Essa mudança repentina é tratada com delicadeza e aceitação, sem resistência ou desespero.

O primeiro verso, curto e direto, "Tive de parar", já instaura essa interrupção abrupta, criando um contraste com a pressa mencionada logo depois. A partir daí, o tom se torna mais contemplativo, e o ambiente noturno se impõe como um espaço de transição: entre o dia e a noite, entre o consciente e o onírico, entre a respiração consciente e a entrega ao sono.

A referência aos alvéolos respirando devagar adiciona uma camada fisiológica à experiência, reforçando o ritmo mais lento e orgânico do momento. O fechar dos olhos é descrito como um movimento inusitado, sugerindo que essa pausa, esse recolhimento, talvez não fosse algo natural ou frequente para o eu lírico.

O jogo de luz e escuridão nos versos finais é particularmente bonito. "Despeço-me do luar" marca o fim de uma vigília, e "abro os olhos para novo astro" sugere a entrada no mundo dos sonhos como um novo espaço de iluminação. O desfecho, "Deixo o sonho me iluminar", transforma o ato de dormir e sonhar em algo revelador, quase transcendental, subvertendo a ideia de que o dia é o único tempo de claridade.

O poema tem um lirismo contido e elegante, explorando imagens simples, mas evocativas, para falar de algo essencial: o ato de parar, respirar e permitir-se sonhar. Ele pode ser lido tanto de maneira literal (sobre a experiência do adormecer) quanto metafórica (sobre aceitar pausas e mudanças inesperadas na vida).

06 ovos...



Da receita faltava um ingrediente,
para comprá-lo saiu rapidamente.

No fogo: arroz, carne e feijão.
Ah! Ovo era a solução...

Morreu atropelada de repente,
mas antes de morrer pensou displicente:

- Na rua me cerca o povo,
em casa o circo pega fogo...

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Seu poema, 06 ovos, tem uma construção concisa e impactante, explorando a tragédia do cotidiano com um tom de ironia sutil. Há um contraste forte entre a trivialidade da cena doméstica — a preocupação com a receita e a solução prática do ovo — e a brusca fatalidade que se segue. Esse choque entre o prosaico e o trágico confere ao poema um efeito surpreendente e reflexivo.

A última estrofe traz uma inversão interessante: a personagem percebe, com uma certa ironia final, que enquanto sua morte atrai a atenção da multidão, a vida que deixara para trás segue caótica. A imagem do "circo pegando fogo" sugere não apenas o abandono da comida no fogão, mas também uma possível desordem emocional ou familiar que fica para trás.

O poema brinca com a simplicidade do cotidiano e o absurdo da morte, ecoando um humor negro e um realismo cruel, mas sem perder a leveza do tom narrativo. A métrica e a rima são simples, o que reforça o caráter espontâneo e acessível do texto.

Se deseja aprimorá-lo, poderia explorar um pouco mais a construção rítmica ou aprofundar a atmosfera, mas, como está, ele já cumpre seu papel de provocar impacto e reflexão.

No mundo da Lua


Sonhando acordado,
acordo sonhando.

Sonhando realidades,
realizando sonhos.
Com os pés no chão
vivo, então,
no mundo da lua...

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Este poema, "No mundo da Lua", é uma composição breve, mas repleta de significados e jogos de linguagem que exploram a relação entre sonho e realidade.

Análise Estrutural e Temática

1. Jogo Antitético e Cíclico
O poema começa com um jogo de oposição entre sonhar acordado e acordar sonhando, criando um efeito paradoxal e simultâneo. Isso sugere um estado de transição contínua entre a vigília e o sonho, entre o real e o imaginado.


2. Diálogo entre Realidade e Imaginação
Nos versos seguintes, a relação entre sonho e realidade se aprofunda: Sonhando realidades, realizando sonhos. Aqui, o eu lírico propõe que sua imaginação não é uma fuga do real, mas uma forma de criar e dar forma a ele. Essa inversão reforça a ideia de que tanto a realidade pode ser moldada pelos sonhos quanto os sonhos podem se tornar reais.


3. A Contradição Final: O Mundo da Lua com os Pés no Chão
O fechamento do poema apresenta outra aparente contradição: Com os pés no chão, vivo, então, no mundo da lua...

Manter os pés no chão indica um senso de realidade, racionalidade e presença.

Viver "no mundo da lua" sugere distração, devaneio e imaginação.


O eu lírico parece sugerir que é possível conciliar os dois mundos – estar presente e, ao mesmo tempo, manter um olhar sonhador, criativo e imaginativo sobre a vida.



Recursos Poéticos

Paralelismo: As estruturas frasais semelhantes ("Sonhando... acordado", "acordo... sonhando", "Sonhando realidades", "realizando sonhos") criam musicalidade e reforçam a simetria entre os conceitos de sonho e realidade.

Ambiguidade: As expressões podem ser lidas de diferentes formas, permitindo múltiplas interpretações.

Antítese: A oposição entre estados mentais (sonho e realidade, pé no chão e mundo da lua) enriquece o significado do poema.

Ellipse e Brevidade: O poema é curto, mas denso em significado, deixando espaço para que o leitor preencha as lacunas com suas próprias experiências e reflexões.


Interpretação Geral

O poema sugere uma visão equilibrada da vida, onde sonhar e viver concretamente não são excludentes, mas complementares. Há uma harmonia entre o real e o imaginário, entre a ação e a contemplação. A ideia central parece ser a valorização do sonho sem perder a conexão com o mundo concreto, reforçando a noção de que a imaginação pode ser um motor para a realização.

Caligrafias


1
De perto
toda caligrafia
é biografia. 

2
A pornografia é a
caligrafia da
dura fantasia.

3
A erótica é cálida,
exótica grafia...
que ao rude sublima.

4
Quem treina a caligrafia
nem desconfia
que seus vícios vicia...
e que suas virtudes pratica...
O poema Caligrafia explora, de maneira concisa e filosófica, a escrita como expressão da subjetividade, conectando-a a dimensões biográficas, eróticas e éticas. Dividido em quatro pequenas reflexões, o texto joga com a materialidade da palavra e os significados simbólicos da caligrafia.

1. Caligrafia como Biografia

"De perto / toda caligrafia / é biografia."

Este primeiro fragmento introduz a ideia central: a escrita manuscrita é uma manifestação da singularidade de quem escreve. Cada traço, cada escolha na grafia revela algo sobre o sujeito, tornando-se uma forma de identidade e história pessoal.

2. Pornografia e Fantasia

"A pornografia é a / caligrafia da / dura fantasia."

Aqui, o poema associa a pornografia a um tipo específico de escrita—uma “caligrafia” que registra o desejo de forma explícita, sem mediações poéticas ou sublimações. O adjetivo “dura” sugere tanto o caráter direto e cru da pornografia quanto uma possível oposição à suavidade da erotização mais refinada.

3. Erotismo e Sublimação

"A erótica é cálida, / exótica grafia... / que ao rude sublima."

O erotismo, diferentemente da pornografia, é apresentado como uma escrita mais refinada, quente (cálida) e exótica. A última linha sugere que o erotismo tem um papel sublimatório, transformando a rudeza do desejo em algo mais elevado ou poético.

4. O Treinamento e os Hábitos

"Quem treina a caligrafia / nem desconfia / que seus vícios vicia... / e que suas virtudes pratica..."

Esta estrofe final amplia o significado da caligrafia para além do simples ato de escrever. Há um jogo interessante entre “vícios” e “virtudes”, sugerindo que a repetição da escrita não é apenas mecânica, mas modela hábitos, influenciando inconscientemente o sujeito. A prática da escrita, assim como qualquer exercício de repetição, pode reforçar tanto tendências negativas quanto positivas.

Conclusão

O poema reflete sobre a caligrafia como expressão da identidade e da psique. Ele relaciona a escrita com o desejo (pornografia e erotismo) e com a formação de hábitos, estabelecendo uma ligação entre a materialidade da grafia e aspectos psicológicos e morais. A estrutura minimalista, com versos curtos e ritmo fluido, reforça a profundidade dos jogos de significado.

Transformers


Para José Eduardo Pandóssio

O alumínio reflete com brílio
o paçar das oras...

Gra-má-ti-ca...

Novíssima
Atualizada
Moderna
Normativa
Ilustrada
Reflexiva
Viva...

O tempo transformers até ferro...

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O poema Transformers brinca com a linguagem e a ortografia de maneira lúdica e crítica, evocando tanto a transformação da língua quanto a passagem do tempo e seus efeitos sobre a materialidade e a normatividade.

1. O Título e o Conceito de Transformação

O título Transformers remete imediatamente à ideia de mudança, evocando não apenas a franquia de robôs que se transformam, mas também o conceito mais amplo de metamorfose e adaptação. No contexto do poema, essa transformação ocorre tanto na língua quanto nos materiais – como o tempo agindo sobre o ferro.

2. O Jogo com a Ortografia e a Reflexão sobre a Língua

Nos primeiros versos, há uma transgressão ortográfica intencional:

"O alumínio reflete com brílio / o paçar das oras..."

O uso de “brílio” em vez de “brilho” e “paçar” em vez de “passar” cria um efeito sonoro peculiar, forçando o leitor a reparar na materialidade das palavras. O "paçar das oras" (ao invés de “passar das horas”) sugere uma flexibilidade da escrita e da fala, revelando o quanto a língua é viva e mutável.

“Gra-má-ti-ca...”

Esse verso isolado e fragmentado dá ênfase à gramática como um tema central do poema, destacando sua rigidez e, ao mesmo tempo, sua capacidade de transformação.

3. A Lista e a Paródia da Normatividade

A sequência de adjetivos que descrevem a gramática –

"Novíssima / Atualizada / Moderna / Normativa / Ilustrada / Reflexiva / Viva..."

– parece uma paródia da maneira como as regras gramaticais são sempre reformuladas e reembaladas como novidade, ainda que sua função normativa permaneça. A oscilação entre termos como “Normativa” e “Viva” sugere uma tensão entre a prescrição da norma e a fluidez da língua na prática.

4. A Conclusão e a Imagem do Tempo

“O tempo transformers até ferro...”

Aqui, há uma fusão entre a ideia do tempo como agente de transformação e a metáfora do material. O alumínio, que inicia o poema refletindo o tempo, se opõe ao ferro, que é suscetível à corrosão. O verbo “transformers” em vez de “transforma” parece indicar um estrangeirismo ou um neologismo deliberado, acentuando a plasticidade da linguagem.

Conclusão
O poema combina humor, crítica e experimentação linguística para discutir a maleabilidade da língua e a forma como as regras tentam, mas não conseguem, fixá-la de maneira absoluta. A metáfora dos materiais (alumínio, ferro) reforça a passagem do tempo e a inevitável transformação de tudo – da gramática, das palavras e dos próprios significados.

Projeção

Projeção
é nomear as nuvens
de coisas, pessoas, bichos,
então,
e achar que não...

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O poema Projeção é uma reflexão concisa e evocativa sobre o mecanismo psíquico da projeção, tanto em seu sentido psicológico quanto em uma dimensão poética e fenomenológica.

1. Título e Tema
O título já aponta para um conceito fundamental da psicologia, especialmente da psicanálise: a projeção, mecanismo pelo qual atribuímos a outrem (ou ao mundo externo) aspectos internos que não reconhecemos em nós mesmos. No contexto do poema, a projeção é explorada de forma imagética e sensível.

2. Imagem Poética
O eu lírico descreve a tendência humana de ver formas familiares nas nuvens — um fenômeno comum que exemplifica a necessidade de nomear, reconhecer e atribuir significado ao que nos rodeia. Nomear as nuvens de "coisas, pessoas, bichos" remete à forma como projetamos conteúdos internos sobre a realidade, muitas vezes sem perceber que estamos fazendo isso.

3. Últimos Versos e Contradição
O poema culmina em um paradoxo: "então, / e achar que não...". A quebra sintática e a ambiguidade sugerem que, apesar de darmos nomes e projetarmos significados, muitas vezes não reconhecemos que estamos projetando. Isso ecoa um aspecto central da projeção psicológica: o sujeito não tem consciência de que está transferindo suas próprias características ao outro ou ao mundo.

4. Minimalismo e Essência
A estrutura enxuta e a escolha econômica de palavras reforçam a profundidade do tema. A concisão do poema reflete a própria natureza da projeção, que ocorre de forma rápida, automática e, muitas vezes, sutil.

Conclusão
O poema captura com elegância e precisão um fenômeno psíquico fundamental, combinando reflexão psicológica e experiência poética. Ele convida o leitor a perceber como moldamos a realidade de acordo com nossas próprias expectativas e desejos, frequentemente sem admitir ou perceber esse processo.

02/03/2025

Vocifera

Voz... Vozeamento... Vozearia!
Vozeio... Vozeirão... Vozerio!
Quem vocifera
diante da delicadeza dela?
Ora,
nem a Bela,
muito menos
a Fera.

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O poema Vociferar brinca com a musicalidade e a intensidade da voz, contrapondo a agressividade do ato de vociferar à delicadeza de uma figura feminina enigmática.

A sequência inicial – "Voz... Vozeamento... Vozearia! Vozeio... Vozeirão... Vozerio!" – cria um crescendo sonoro e semântico, explorando diferentes nuances da vocalização. Há um movimento de expansão, como se a voz crescesse em volume e impacto, preparando o leitor para um clímax que, no entanto, não acontece da forma esperada.

O poema, então, faz uma pergunta retórica: "Quem vocifera diante da delicadeza dela?". O verbo "vociferar", que remete a gritar com fúria ou indignação, contrasta diretamente com "delicadeza", sugerindo que o poder da suavidade pode neutralizar ou desarmar qualquer tentativa de imposição pela força.

A resposta, dada de forma quase casual – "Ora, nem a Bela, muito menos a Fera." – invoca o conto A Bela e a Fera, mas subverte a lógica tradicional. Nem a gentileza da Bela, nem a brutalidade da Fera se prestam ao ato de vociferar. Isso sugere que, diante da verdadeira delicadeza, tanto a doçura quanto a violência se silenciam.

A estrutura curta, sonora e cheia de ritmo reforça a dualidade entre força e suavidade, demonstrando que há momentos em que até os extremos – representados pela Bela e pela Fera – se rendem ao silêncio. O poema é, assim, uma ode à potência da delicadeza, que desarma até os gritos mais ferozes.
RESPOSTA:
A figura feminina enigmática é a fala, a linguagem,  a voz.
RÉPLICA:
Isso enriquece ainda mais a leitura do poema! A "delicadeza dela" não se refere a uma mulher literal, mas à própria linguagem, à voz em sua essência mais sutil e significativa.

Essa interpretação reforça o contraste entre o barulho descontrolado (vozeamento, vozearia, vozerio) e a delicadeza da comunicação genuína. O poema sugere que a verdadeira fala – a que possui valor e significado – não se impõe pelo grito, mas pela sutileza.

A pergunta "Quem vocifera diante da delicadeza dela?" ganha um sentido filosófico: quem ousa gritar ou distorcer a voz quando se depara com sua forma mais pura e essencial? A resposta – "nem a Bela, muito menos a Fera." – indica que tanto a beleza quanto a brutalidade são incapazes de vociferar diante da linguagem autêntica. Nem o excesso de doçura nem a força bruta são suficientes para dominar a voz verdadeira.

O poema, então, não apenas explora a musicalidade e o crescimento da intensidade sonora nos primeiros versos, mas também se constrói como uma reflexão sobre a natureza da comunicação. Ele sugere que a fala, quando respeitada em sua delicadeza, transcende a necessidade do grito e se impõe por sua própria presença.

Com esse viés, o poema ganha uma profundidade ainda maior, transformando-se em um elogio à linguagem bem empregada, ao silêncio que a antecede e à força da palavra precisa.